Entre censura, fake news e propaganda, Rússia acirra controle do discurso sobre a guerra na Ucrânia
Censura de sites jornalísticos, prisão e multa a quem criticar as forças armadas russas, divulgação de propaganda nas redes sociais e videogames: Moscou não poupa esforços para controlar o discurso sobre a guerra na Ucrânia. Desde o início da invasão, há oito dias, o Kremlin endurece as medidas para cercear a informação.
A ofensiva da Rússia também passa pela comunicação. O país abriu caminho nesta sexta-feira (4) para aprovar um texto com duras penas de prisão e multas para quem publicar "informações falsas" sobre o seu exército, em mais uma medida de repressão interna em meio à invasão da Ucrânia.
Os deputados da câmara baixa do Parlamento russo, a Duma, aprovaram por unanimidade uma emenda que prevê penas de até 15 anos de prisão se forem divulgadas informações que busquem "desmerecer" as Forças Armadas do país. Outra emenda contempla punições para quem pede "sanções contra a Rússia", justamente no momento em que Moscou enfrenta medidas de países ocidentais pelo ataque à Ucrânia.
Esses textos se aplicam tanto à mídia quanto aos cidadãos. Se forem aprovadas pela câmara alta, reforçarão o arsenal das autoridades em sua guerra de informação, paralela à ofensiva na Ucrânia. O presidente do Comitê de Política da Informação da Duma, Alexander Khinshtein, citado pela agência de notícias Interfax, disse que a "lei se aplica a todos os cidadãos, não apenas aos da Rússia".
Desde os primeiros dias do conflito, Moscou vem impondo a censura para controlar a informação. No último fim de semana, o Kremlin proibiu o uso nos meios de comunicação do país das palavras "guerra", "ataque" e "invasão". A expressão aceita é "operação especial em Donbass", região no leste da Ucrânia controlada por separatistas pró-russos. O Roskomnadzor, o órgão regulador das comunicações da Rússia, indicou que multas de até 5 milhões de rublos (R$ 300 mil) podem ser aplicadas em caso de descumprimento.
Desta forma, Putin se afasta da ideia de agressão ao país vizinho, sobre a qual muitos russos nem fazem ideia que está ocorrendo. Em entrevista à RFI, a ucraniana Marina afirma que a irmã, que vive na Rússia, não estava a par do conflito até o início desta semana.
"As mídias estatais russas dizem coisas horríveis, que os ucranianos é que são os agressores, que a Ucrânia é quem ataca a Rússia", conta. Marina, no entanto, já conseguiu convencer a irmã. "Ela me disse que, depois de conversarmos, mudou de opinião. Agora ela entende que é a Rússia que faz uma guerra contra a Ucrânia", afirma.
Pressão sobre veículos de comunicação
O controle da informação também visa censurar os poucos meios de comunicação independentes que continuaram trabalhando na Rússia, apesar do clima hostil. Boa parte da população russa desconhece até mesmo a existência de uma guerra na Ucrânia. Mas, para controlar ainda mais as notícias propagadas sobre o conflito, as autoridades aumentaram a pressão sobre os jornalistas.
Nesta sexta-feira (4), o Roskomnadzor anunciou ter limitado o acesso aos sites em russo da rede britânica BBC e da emissora alemã Deutsche Welle, bem como ao portal independente Meduza e à rádio Svoboda, antena russa da RFE/RL (Rádio Free Europe/Radio Liberty), financiada pelo Congresso americano. Internautas russos também estão com dificuldades para acessar o Facebook, cuja sede fica nos Estados Unidos.
Na quinta-feira (3), a emblemática estação de rádio Ekho Moskvy (Ecos de Moscou) anunciou sua dissolução devido ao assédio sofrido por sua cobertura da invasão da Ucrânia. A rede de televisão de oposição Dojd também anunciou a suspensão de suas atividades, depois de ter sido bloqueada pelo Roskomnadzor por sua cobertura da invasão.
O site de notícias Znak anunciou que estava cessando suas atividades "por causa do grande número de restrições que surgiram recentemente". The Village, agenda cultural de referência em Moscou, decidiu fechar seu escritório na capital russa e transferi-lo para Varsóvia, na Polônia.
Guerra de edição e propaganda
A batalha de informação também passa pelos canais mais inesperados, como o Wikipedia. A página em francês da plataforma é palco de uma verdadeira guerra de edição. Na última sexta-feira (25), um dia após o início da invasão da Ucrânia, o perfil do presidente russo, Vladimir Putin, sofreu diversas alterações para exaltar sua carreira, com informações cujas fontes não eram confiáveis, a ponto de o moderador apontar um "comportamento não-colaborativo".
Em entrevista à Franceinfo, Capucine-Marin Dubroca-Voisin, presidente da Wikimedia France, associação que junto com a Wikipedia "promove o compartilhamento de conhecimentos", suspeita que usuários pagos pelo governo russo sejam os autores das modificações. "Os contribuidores não são anônimos, mas acontece de muitos esconderem sua orientação política", diz.
A propaganda russa também investe na lavagem cerebral dos gamers. Atualmente a maioria dos jogos online disponibiliza um espaço de chat para que os participantes possam se comunicar em tempo real. Em entrevista à Franceinfo, o francês Antoine percebeu discursos orientados nas mensagens publicadas no Starcraft 2, jogo online de estratégia militar e de ficção científica.
"Recados escritos pelos jogadores são veiculados na página inicial e durante uma missão. Vejo regularmente referências à Vladimir Putin, apresentado como um líder necessário", conta.
O mesmo comportamento é comum no game Fortnite, frequentemente utilizado por grupos de extrema direita para recrutar jovens militantes. O jornalista francês Paul Conge é especializado no assunto, sobre o qual publicou um livro-reportagem em 2020.
Em entrevista à Franceinfo, ele afirma que a propaganda russa invadiu os jogos online há cerca de dez anos. Nessas plataformas, Putin é saudado por sua longevidade no poder, sua postura diante dos Estados Unidos e à União Europeia, além da visão tradicional da nação e da família.
"Isso explica porque os gamers falam cada vez mais das maldades da Otan, quando antigamente eles nem sabiam o que era a aliança atlântica", diz Conge.
Um ano difícil para jornalistas e oposição na Rússia
Todos esses fenômenos ocorrem em um ano particularmente difícil na Rússia para a mídia independente, a oposição política e a sociedade civil. Inúmeras publicações e jornalistas foram rotulados de "agentes estrangeiros", categoria que os obriga a realizar duros procedimentos administrativos, com o risco de serem processados judicialmente pela menor falha.
O principal opositor do Kremlin, Alexei Navalny, foi preso em seu retorno à Rússia, tendo sobrevivido a uma tentativa de envenenamento. Seu movimento foi desmantelado.
A Justiça russa também decidiu no último mês de dezembro fechar a Memorial, uma ONG que era um pilar da defesa dos direitos humanos e guardiã da memória das milhões de vítimas dos crimes na União Soviética.
O veredicto foi confirmado após um recurso na segunda-feira (28). A Ong anunciou nesta sexta-feira (4) que uma operação policial estava em andamento em seus escritórios em Moscou, levantando temores de seu fechamento efetivo.
Outra Ong, a "Assistência Cívica", que ajuda os migrantes, também foi alvo de batidas policiais. No momento, as razões para ambas as investigações são desconhecidas.
Detenção de manifestantes
De acordo com um Observatório de direitos humanos na Rússia, o OVD-Info, mais de oito mil pessoas foram presas no país - a maioria em Moscou e São Petersburgo - desde 24 de fevereiro por terem se manifestado contra a invasão da Ucrânia. Embora a repressão afete sobretudo os russos, também há quem aponte para organizações estrangeiras.
O presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, culpou nesta sexta-feira as redes sociais com sede nos Estados Unidos de serem "usadas como armas" para espalhar "ódio e mentiras". Algo que "devemos nos opor", explicou.
Já Valeri Fadeev, presidente do Conselho de Direitos Humanos do Kremlin, acusou a mídia estrangeira de espalhar "fake news" sobre a invasão promovida pela Rússia. "Lançamos um projeto para combater a enorme quantidade de notícias falsas vindas da Ucrânia e de países ocidentais", disse ele.
(RFI e AFP)
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