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Com 82% da população na pobreza, Líbano tenta invisibilizar miséria, mas vai às urnas por mudanças

14/05/2022 07h37

Segundo dados de 2021 da ONU, 82% da população libanesa vive hoje na pobreza, e apenas entre 2019 e 2020, a taxa de empobrecimento saltou de 28% para 55% no Líbano. Num país que dá a impressão de ter sido solenemente abandonado por seus dirigentes históricos, o assistencialismo e iniciativas isoladas da sociedade civil libanesa tentam tapar os buracos deixados pela ausência de políticas públicas contra a espiral de empobrecimento, que hoje também ameaça a classe média libanesa.

Márcia Bechara, enviada especial da RFI ao Líbano

Alguns libaneses preferem jogar a poeira para debaixo do tapete, numa tentativa de invisibilização da miséria. O país tem poucas pessoas em situação de rua, ao contrário, por exemplo, do Egito, na mesma região. Há poucos sem-teto visíveis, em comparação com o Brasil ou mesmo a Europa, como a reportagem da RFI constatou em cidades como Beirute, Tripoli, Byblos, ou mesmo na região agrícola do vale do Bekaa. Uma razão para esta invisibilidade é que a longa história de pobreza no Líbano parece ter ficado de fora do debate público, sobretudo nestas eleições legislativas de 2022.

O fenômeno tende a ser percebido como algo "importado", com os pobres muitas vezes apresentados como migrantes ou refugiados. "São sírios", reforça a guia local que acompanha a reportagem, mostrando pedintes no sinal de trânsito. "O libanês não pede esmola", insiste Ella Bittar, presidente da associação caritativa Saint-Vincent de Paul, em Beirute, que há 40 anos oferece assistência alimentar a milhares de famílias libanesas.

Parte da imprensa local denuncia o que chama de "manobra de dissimulação da pobreza" por parte dos libaneses, apontando cidadãos que mudam "sutilmente" seus hábitos de consumo, optando por marcas locais ou produtos de menor qualidade, desistindo de certas despesas, como escolas mais caras ou planos de saúde. Fornecedores de bens e serviços também se adaptaram sutilmente para atender às restrições dos consumidores de classe média, substituindo, às vezes clandestinamente, os produtos oferecidos, ou mesmo reduzindo as quantidades. 

Pobreza tratada como assunto privado

Se as necessidades dos refugiados são apresentadas como uma questão política e uma responsabilidade da comunidade internacional, a pobreza é deixada de lado como um assunto privado, ou a ser tratado por iniciativas isoladas da sociedade civil libanesa, já sobrecarregada com as lutas do cotidiano. A classe média libanesa apoia os mais vulneráveis, mas através de redes de caridade essencialmente informais: não são raros relatos de proprietários de lojas que vendem fiado a famílias em dificuldade ou moradores de um bloco de apartamentos que garantem que o vizinho que acabou de perder o emprego tenha o suficiente para comer.

Por outro lado, a falta de acesso números oficiais sobre a pobreza no país torna as desigualdades difíceis de serem analisadas. A escassez de transparência enfraquece o processo democrático nestas eleições de 2022, especialmente levando-se em conta que uma parte significativa da riqueza privada é detida pela classe política libanesa: as famílias [do atual premiê Najib] Mikati e [do ex-premiê, que abandonou a disputa política esse ano, Saad] Hariri, possuem vários membros no ranking de bilionários da revista Forbes.

Desigualdade social

Outra questão é a crescente desigualdade social. Embora o Banco Mundial tenha classificado o Líbano como um país de renda "média" - com um PIB per capita equivalente a mais de US$ 13.000 por ano durante a última década - esta riqueza foi historicamente distribuída de forma extremamente desigual. O Laboratório Mundial da Desigualdade (World Inequality Database) estimou, por exemplo, que os 10% mais ricos da população libanesa abocanharam mais da metade da renda nacional em 2014.

O desespero da população libanesa, que rouba tampas de bueiro em ferro fundido, como constatado na estrada para Trípoli, e mesmo coberturas de metal de lixeiras, como relatou à RFI o ecologista e candidato independente Ziad Abi Chaker, é moeda corrente no dia a dia, especialmente depois do 4 de agosto de 2020, quando uma dupla explosão no porto de Beirute matou 214 pessoas e feriu mais de 6.500, devastando bairros inteiros da capital libanesa.

No dia da dupla explosão, Sandra Klat, fundadora e presidente da associação Bassma ("sorriso", em libanês), que há 20 anos ajuda a população carente no icônico bairro de Badaro, marco da guerra civil libanesa, chegou a seu escritório e encontrou apenas uma janela destruída, em contraste com a catástrofe dos prédios implodidos ao redor. "Chegamos no dia 5 [de agosto], o teto da entrada havia desabado, tínhamos vidro quebrado pelo chão, mas apenas essa janela havia sido catapultada pela força da explosão, o que contrastava com o resto do bairro", conta, mostrando o local.

"Começamos oferecendo ajuda de base alimentar, mas rapidamente percebemos que isso seria largamente insuficiente", diz. "Há que se pagar as escolas, as contas, os remédios, é preciso ajudá-los a encontrar trabalho, lhes ensinar uma profissão, para que eles possam se tornar autossuficientes e deixar a associação", relata.

Miséria depois da explosão

A sede da Bassma fica em Badaro, bairro que carrega grande parte da história do Líbano, duramente atingido pela explosão no porto de Beirute. "No dia 6 de agosto, tomamos a decisão de levar todas as refeições quentes, água, pão, para barracas com guarda-sol e começamos a ajudar os moradores do bairro, que haviam perdido tudo. Fizemos casa por casa, imóvel por imóvel, fizemos reuniões por Zoom com arquitetos para reconstruir o bairro, e depois de dois ou três dias os voluntários começaram a chegar, assim como as doações", recorda Klat.

"As novas gerações nunca vão aceitar o que aceitamos", acredita Klat. "Porque somos a geração da guerra, nascemos e crescemos sob as bombas. Quando chegou a paz, acreditamos que fosse uma vantagem, sendo que foi ali que começamos a ter a guerra econômica e financeira, porque o preço que pagamos hoje é o resultado de anos de políticas financeiras equivocadas", diz. 

Faz coro à Sandra Klat a veterana Ella Bittar, presidente da fundação Saint-Vincent de Paul, que desde 1860 ajuda os necessitados no país. "Tenho medo de que o povo seja influenciado de novo por toda essa mídia que faz pressão e que eles votem de novo pelas mesmas pessoas que nos levaram até aqui", confessa Bittar.

"Neste momento, eu tento, toda vez que encontro alguém, de alertar, eu costumo dizer 'não se esqueçam de onde vocês chegaram, não se esqueçam da miséria onde vocês vivem, sem eletricidade. Não se esqueçam que vocês e seus pais estão morrendo porque não têm dinheiro para ir ao hospital'", insiste.

"Castelo de cartas"

"A cada 30 ou 40 anos o Líbano vive novas guerras. Começamos a nos desenvolver, e, de repente, levamos um golpe. Comecei nessa associação, que é composta unicamente por voluntários, no começo da guerra civil [em 1975], porque queria fazer alguma coisa", diz.

"[O crescimento econômico midiatizado antes de 2017] era fake, depois é que nos demos conta que isso nada mais era do que uma peça de teatro que virou uma tragédia. Havia alguma coisa escondida, não sabíamos direito, e foi uma gota d'água que fez explodir toda essa pobreza, quase do dia para a noite, tudo caiu por terra. Visualizei o Líbano exatamente como esse castelo de cartas que fazíamos na infância, um sopro e tudo desabou. De repente, não havia mais nada", testemunha.