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Festa da Música celebra 40 anos de vitalidade democratizando palcos na França e no mundo

21/06/2022 11h12

O solstício de verão do 21 de junho não determina apenas a data oficial da temporada preferida de franceses e turistas, mas também o dia da "Festa da Música" ("Fête de la musique", em francês). Criada em 1982 durante a icônica gestão de Jack Lang no Ministério da Cultura, o evento se consolidou no calendário cultural da França. Estima-se que mais de 180.000 concertos são organizados a cada ano no país e a festa se internacionalizou, exportada para mais de 120 países, nos cinco continentes. 

Quem mora na França sabe que o dia 21 de junho é especial. É aquele momento único do ano quando o vizinho carrancudo solta enfim o vozeirão na sacada da quitinete, ou quando a sobrinha de 20 anos resolve testar ? na potência máxima ? a capacidade daquelas novas caixas de som, compradas em três vezes numa boa loja vintage de Paris. O começo do verão na terra de Asterix convida o cidadão e a cidadã comuns a ressuscitar o bardo ou a soprano que existe dentro de cada um de nós, e os amadores da música se autorizam enfim a cantar (e tocar) fora dos limites do chuveiro. Os casacos foram para o porão, e a onda de calor já exige vestuário mais leve, se possível com plumas e paetês. A "Festa da Música" é, afinal, o verdadeiro carnaval de rua francês.

Na capital, as ruas se transformam numa festa incandescente, com apresentações simultâneas a cada metro quadrado. A folia se repete nas ruelas dos vilarejos franceses, de norte a sul do país. Após dois anos de crise sanitária devido à Covid-19, e por ocasião de seu 40° aniversário, a ênfase desta edição 2022 da Festa da Música será voltar às suas origens e inspirações iniciais. Todos os anos, quase cinco milhões de músicos amadores agitam as ruas da França a cada 21 de junho. Mais do que os números, é a longevidade do evento que impressiona os franceses e a comunidade internacional.  

O sucesso da "Fête de la musique" perdura há quatro décadas. A ideia original veio do musicista e jornalista cultural Maurice Fleuret, que em outubro de 1981 foi nomeado diretor de Música e Dança no Ministério da Cultura chefiado por Jack Lang, sob a presidência do socialista François Mitterrand. Fleuret declarou na ocasião seu desejo de dirigir um departamento ministerial que contemplasse todo o espectro da produção musical na França, "desde o acordeão até a indústria fonográfica". 

Alguns meses depois, o então diretor descobriu, a partir de um estudo, que cinco milhões de franceses, incluindo um em cada dois jovens, tocavam um instrumento musical. A França, a seus olhos, se tornou um gigantesco e inexplorado "viveiro de artistas". Para Maurice Fleuret, a música tinha que escapar da atmosfera abafada do conservatório e chegar às ruas, e, sobretudo, tinha que ser democratizada.

Na visão de Fleuret, os concertos não deveriam mais ser organizados apenas para o povo, mas pelo povo. "Temos que mostrar que a França é musicista antes de ser uma amante da música", insistia. A escolha do solstício de verão é simbólica para os franceses: a noite de 21 de junho é tradicionalmente uma noite de festa, um legado das celebrações do Dia de São João. Ainda em 1976, o músico norte-americano Joel Cohen propôs à estação de rádio France Musique uma "Saturnália da música" para marcar os solstícios de inverno e de verão, respectivamente em 21 de dezembro e 21 de junho.

A "Fête de la musique" foi lançada em 1982 com a população sendo convidada "a participar de sua janela, de sua porta, na rua, ou nos lugares tradicionalmente reservados para eventos musicais: praças, quiosques, igrejas, parques, jardins". Durante a primeira edição, apenas meia hora era reservada para concertos profissionais, com ênfase reservada aos músicos amadores. Seguindo ao pé da letra a diretiva de proporcionar a participação de todos, o Ministério da Cultura chegou a distribuir instruções sobre como construir seus próprios instrumentos musicais, usando objetos como funis ou mangueiras de jardim.

O evento foi um sucesso, e os acordes chegaram rapidamente aos países vizinhos. "No dia seguinte à primeira festa da Música, acompanhei [François] Mitterrand à Espanha. Fomos recebidos pelo rei Juan Carlos, que teceu comentários sobre este evento que acabara de nascer. Era como se a Festa já tivesse atravessado as fronteiras", contou Jack Lang aos microfones da RFI. Desde então, a febre musical do solstício de verão se espalhou por mais de 120 países e 340 cidades, sendo Pequim a mais recente a aderir ao ritmo da festa francesa.

"Sucesso inesperado"

Segundo Lang, o sucesso do evento foi inesperado. "Era um projeto-piloto, bastante atrevida até: propor às pessoas que deixassem suas casas com seu instrumento musical, sua voz, seus amigos e tocassem em praças, em estações, em quase todos os lugares. Não era certo que eles responderiam ao nosso chamado. E além disso, naquele momento eu tive um dos maiores receios da minha vida. Disse a mim mesmo que poderia ser um fracasso catastrófico, que as pessoas ficariam em casa", lembra o icônico ex-ministro da Cultura. "E, finalmente, as pessoas ousaram, quiseram participar. E não apenas em Paris, como se poderia pensar, mas em toda a França", declarou. 

Quarenta anos após sua criação, a "Fête de la musique" não perdeu nada de seu espírito original na França. O evento continua sendo um festival popular, celebrado em cada pequeno vilarejo francês, e os grupos amadores continuam sendo os principais destaques. Nas grandes cidades, porém, os palcos com músicos profissionais se tornaram comuns, seja em uma atmosfera pop, rock, cabaré, erudita ou eletro, com repertório clássico ou contemporâneo. 

" [A Festa da Música] é um momento de graça, um momento em que nos sentimos felizes como uma espécie de humanidade compartilhada. Este ano, isto talvez seja mais verdadeiro do que o habitual, uma vez que estivemos confinados, se me atrevo a dizer. E é um momento de reencontro, de respiração, de vida nova, de renascimento. E a festa, este ano, tem mais do que nunca seu significado cívico, seu significado humano", declarou Jack Lang à RFI.

Segundo o ex-ministro de Mitterrand, a Festa da Música se tornou um "ritual". "Recomendo ler um texto muito bonito do Edgar Morin, que publicou há alguns anos um prefácio de um livro na Éditions du Seuil que se chama Le Sacre musical des Français (O Ritual musical dos Franceses, em tradução livre). Morin descreve isso muito bem. Ele diz que esta celebração cósmica se tornou um ritual cívico. E é verdade", conclui Lang.