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Devolução de restos de líder congolês poderia incitar política de reparação de danos coloniais à África?

27/06/2022 09h20

Sessenta e um anos após seu assassinato, os restos mortais do líder congolês Patrice Lumumba terão enfim seus funerais na capital da hoje República Democrática do Congo, Kinshasa. Segundo informações da agência Deutsche Welle, estes "restos mortais" se resumem a um único dente de ouro remanescente do cadáver do ex-primeiro ministro da então República do Congo, o primeiro a ser eleito depois da independência em relação à Bélgica.

Flávio Aguiar, analista político

Nascido em 1925, Patrice Eméry Lumumba tornou-se o líder do Movimento Nacional Congolês, fundado em 1958. Ficou famoso seu discurso de improviso na cerimônia de reconhecimento da independência do novo país, em junho de 1960. O então rei Balduíno da Bélgica fez o discurso oficial, elogiando os progressos feitos pelo chamado "Congo Belga" durante o período colonial. De surpresa, Lumumba tomou a palavra e denunciou a exploração e as atrocidades cometidas pelos belgas durante sua dominação. Consta que seu discurso provocou enorme constrangimento entre as autoridades belgas presentes e também entre membros da elite congolesa.

Lumumba foi eleito primeiro ministro, e Joseph Kasa-Vubu presidente. Porém a região do rio Congo, que lhe deu seu nome, e sobretudo a de seu principal formador, o rio Lualaba, são ricas em minérios de ouro, cobre e urânio. Por isto, durante a Guerra Fria foram alvo das disputas entre as potências em conflito direto, Estados Unidos e União Soviética, também do Reino Unido e da ex-metrópole, a Bélgica, cujas companhias mineradoras mantiveram suas propriedades mesmo depois da independência. Os conflitos se agravaram porque a então província de Katanga, a mais rica do país, liderada por Moise Tschombe, declarou-se independente do governo central, dando início a uma guerra civil. Tschombe tinha o apoio dos Estados Unidos, por meio da CIA, do Reino Unido, da Bélgica e de suas mineradoras.

O governo de Lumumba passou a sofrer todo o tipo de contestação, com uma grande turbulência política tomando conta do país. A Bélgica enviou 6 mil soldados para o Congo, a pretexto de proteger seus cidadãos que lá viviam. Havia também a presença dos chamados "Boinas Azuis", tropas a serviço da ONU. Lumumba tentou conseguir ajuda e apoio dos Estados Unidos, do Canadá e da ONU, tendo viajado até Nova Iorque, Washington e Ottawa, sem sucesso. Tanto o governo norte-americano, quanto os britânico e belga temiam que ele se aproximasse da União Soviética, e se opunham à sua intenção de nacionalizar as companhias mineradoras.

Em setembro de 1960, o coronel Joseph Désiré Mobutu depôs o governo e assumiu o poder. Lumumba tentou fugir, mas acabou preso pelas forças de Mobutu num lance dramático: sua mulher e seus filhos ficaram prisioneiros das forças que o perseguiam, e ele praticamente entregou-se a elas, para salvá-los. Mobutu então decidiu entregá-lo, com mais dois assessores, a seu inimigo Tschombe. Lumumba e seus seguidores foram espancados e torturados, e no dia 17 de janeiro de 1961, na presença de autoridades de Katanga e também de oficiais belgas que assessoravam o governo rebelde, os três foram fuzilados.

Corpo dissolvido em ácido sulfúrico

O corpo de Lumumba foi enterrado em cova rasa. No dia seguinte, por ordem de Tschombe, o túmulo foi profanado, o corpo de Lumumba foi exumado e dissolvido em ácido sulfúrico. Quem comandou esta operação foi o oficial belga Gerard Soete e seu irmão. Os ossos remanescentes foram espalhados, mas Soete guardou, como lembrança um tanto macabra, o dente de ouro, que levou com ele para a Bélgica. Morto no ano de 2000, a relíquia ficou com seus familiares.

Em 2002, o governo belga reconheceu oficialmente sua responsabilidade no assassinato de Lumumba. Em 2016, os familiares de Lumumba iniciaram um processo para reaver o dente. Em junho deste ano o primeiro-ministro belga, Alexander De Croos, entregou-o, com um pedido de desculpas oficial aos familiares. O dente seguirá num caixão fúnebre para Kinshasa, onde será honrado em homenagens oficiais, sendo depois depositado num mausoléu especial. Foi declarado luto oficial no país de 27 a 30 de junho.

Anteriormente o rei Felipe, atual monarca da Bélgica, visitara a República Democrática do Congo, levando objetos culturais e sagrados de que o governo belga tinha se apossado. O rei fez uma declaração oficial lamentando os anos de exploração e atrocidades de seu país durante o período colonial.

Esperemos que a entrega da relíquia feita com ouro provavelmente congolês venha a ser a pedra fundamental de uma política de reparação da Bélgica em relação ao Congo e da Europa em relação à África.

Um lembrete: em setembro daquele ano de 1961 o avião em que viajava o secretário-geral da ONU, o diplomata sueco Dag Hammarskjold com 15 acompanhantes, entre assessores, guarda-costas e a tripulação, caiu na vizinha Rodésia do Norte, hoje Zâmbia, matando todos os viajantes. O secretário seguia para o Congo, a fim de tentar uma mediação para o conflito. Até hoje existem fortes suspeitas de que o avião tenha sido abatido numa operação coordenada por agências dos Estados Unidos, do Reino Unido, da África do Sul do apartheid, e pelas mineradoras belgas. Há uma nova investigação da ONU a respeito. Mas este assunto fica para uma outra oportunidade.