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Bloqueio de cereais vira arma de guerra da Rússia; Brasil tenta se reposicionar

29/06/2022 08h11

Em meio às sanções ocidentais contra a Rússia após a invasão da Ucrânia, Moscou tem feito de tudo para impedir a saída de cereais ucranianos para os clientes internacionais. A escassez de trigo, milho e outros grãos cruciais para o abastecimento, principalmente nos países em desenvolvimento, leva as Nações Unidas e os países do G7 a subirem o tom contra a Rússia - por enquanto, em vão.

Juntos, Moscou e Kiev são os maiores exportadores de trigo, com 60 milhões de toneladas vendidas em 2021. Atualmente, cerca de 20 milhões de toneladas encontram-se bloqueadas nos portos ucranianos no Mar Negro, um estoque que pode ser multiplicado por três com a safra que está sendo colhida.

Enquanto isso, países muito dependentes, como os do Oriente Médio e do norte africano, têm poucas alternativas locais para substituir o trigo ucraniano, destaca Pierre Janin, pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável (IRD) da França e autor de Batailles de la Faim (Batalhas da Fome, em tradução livre):

"Evidentemente, isso se tornou um elemento importante para Moscou: fazer da alimentação uma arma econômica e tentar colocar no Ocidente a responsabilidade, com a expectativa de que terá um efeito nos mercados. Estamos numa guerra sistêmica em que todos os meios são válidos para pressionar os mercados", afirma, em entrevista à RFI.

Redirecionar produção

As tensões decorrentes do conflito, que fizeram o preço da commodity dobrar em poucos meses, se acentuaram com a seca na Índia. Neste contexto, os países produtores se apressam para erguer barreiras às exportações e poder garantir a autossuficiência.

Mas para a economista Sandrine Dury, especialista em desenvolvimento agrícola do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisas Agronômicas para o Desenvolvimento (Cirad), o Ocidente tem margem de manobra para reagir à chantagem dos russos. A primeira cartada seria redirecionar a parte das safras de milho e colza destinadas à produção de biocombustíveis.

"Para dar uma ideia dos volumes, só nos Estados Unidos, 140 milhões de toneladas de milho são utilizadas para fabricar biocombustíveis, sendo que o mercado internacional de milho é de 200 milhões de toneladas", explica a pesquisadora. "Se juntamos as exportações de cereais da Rússia e da Ucrânia, chegamos a 85 milhões de toneladas, ou seja, se reduzíssemos pela metade o milho americano destinado a virar combustível, chegaríamos mais ou menos à quantidade de cereais que estão bloqueados nos portos ucranianos - e isso liberaria as tensões no mercado."

Brasil aumenta produção, mas não é competitivo

Já o Brasil, grande exportador de matérias-primas, tenta se reposicionar neste cenário, aumentando a produção nacional e visando a autossuficiência em trigo, mas também de olho na alta das exportações. Por enquanto, o país é um importador de peso - compra cerca de 6 milhões de toneladas, a metade do consumo nacional -, mas vê potencial na expansão das plantações em áreas degradadas do Cerrado.

De 2015 para cá, conforme a Companhia Nacional de Abastecimento, a produção nacional cresceu 50%. Só nos primeiros seis meses do ano, o país já dobrou o volume de vendas do cereal, em relação ao ano passado. A meta defendida pela Embrapa Trigo é continuar a crescer 10% ao ano, até se tornar um importante player global, com produção de 20 milhões de toneladas projetadas para 2031.

Mas para o especialista em trigo da Safras & Mercados Elcio Bento, o objetivo é ambicioso demais. O chamado "custo Brasil" encarece a tal ponto a produção nacional que sai mais barato importar.

"Teve um estalo que veio forte pela questão preço. Quando acontece esse tipo de movimento que podemos dizer pontual, afinal uma guerra não vai durar para sempre, ela gera oportunidades de negócios. A questão agora é o quanto a conjuntura atual vai mudar a estrutura do mercado de trigo no Brasil", salienta o analista. "É saber se o trigo do Brasil, que se colocou na vitrine do mercado mundial, vai conseguir se tornar viável em momentos de normalidade do mercado internacional. O nosso custo é muito alto. Será que vamos conseguir manter uma competitividade externa? O trigo argentino tem um custo de produção muito abaixo do brasileiro - a Argentina é a grande concorrente do Brasil."

Os Estados do Rio Grande do Sul e do Paraná respondem por 90% da produção nacional de trigo.