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Festival de Avignon exorciza a guerra e se projeta no futuro com caleidoscópio do teatro mundial

07/07/2022 10h12

"Era uma vez." É com a típica frase de abertura de fábulas infantis que o veterano diretor francês Olivier Py apresenta a 76ª edição do Festival de Teatro de Avignon, sua última à frente de um dos maiores eventos teatrais do mundo, que acontece no sul da França a partir desta quinta-feira (7). Exorcizando a violência da guerra, o festival abre suas portas com uma criação do diretor russo dissidente Kirill Serebrennikov, e termina no dia 26 com o cabaré noir das ucranianas do Dakh Daughters.

"Era uma vez." É com a típica frase de abertura de fábulas infantis que o veterano diretor francês Olivier Py apresenta a 76ª edição do Festival de Teatro de Avignon, sua última à frente de um dos maiores eventos teatrais do mundo, que acontece no sul da França a partir desta quinta-feira (7). Exorcizando a violência da guerra, o festival abre suas portas com uma criação do diretor russo dissidente Kirill Serebrennikov, e termina no dia 26 com o cabaré noir das ucranianas do Dakh Daughters.

Márcia Bechara, enviada especial a Avignon

O burburinho já começou a invadir as ruelas medievais da "Cidade dos Papas", epíteto histórico de Avignon, cidade incrustrada na região francesa de Provence, às margens do rio Ródano. Outrora sede do Vaticano (1309-1423), Avignon acolhe anualmente atrações e personagens menos pudicos num megafestival internacional que contabiliza este ano nada menos que 1.616 espetáculos de artes cênicas, sendo 46 na programação oficial ("In") e outras 1570 peças em suas ramificações ("Off"), nos quase 140 teatros da antiga cidadela medieval.  

Nos últimos dias, Avignon testemunhou um dos rituais mais tradicionais do festival - a amarração dos milhares de cartazes pela cidade. Patrimônio Mundial da Humanidade tombado pela Unesco, Avignon preserva a maior parte de seus muros e os profissionais de teatro não "colam" cartazes, mas os amarram num processo artesanal, que exige paciência de dias para preparar a cola e muita coragem das equipes para encarar as escadas sobre as pedras irregulares das calçadas históricas.

O Brasil não marca presença este ano na programação oficial, mas na rica oferta paralela do festival, com duas produções: "Une femme au soleil" ("Uma mulher ao sol"), da companhia de teatro Projeto Trajetórias, dirigida pelo carioca Ivan Sugahara, e "Tom à la ferme", com direção de Rodrigo Portella, texto do canadense Michel Marc Bouchard que inspirou o filme homônimo do enfant terrible e gênio precoce do cinema Xavier Dolan.

Espelhando a herança dos cortejos medievais, o desfile dos artistas do "Off" abriu na quarta-feira (6) oficialmente as festividades dessa que é considerada a maior manifestação de artes cênicas do planeta. A 76ª edição do Festival de Avignon traz também consigo este ano a memória de dois grandes nomes do teatro mundial: Jean-Baptiste Poquelin, o famoso Molière, cujos 400 anos de nascimento são celebrados em 2022, e Peter Brook, o diretor britânico, referência do teatro contemporâneo mundial, morto no domingo (3), que receberá uma homenagem especial durante o festival.

Apesar do bucólico subtítulo "Era uma vez" ("Il était une fois"), de ingênua a programação do 76° Festival de Teatro de Avignon não parece ter nada. De acordo com o experiente Olivier Py, que encabeça o evento desde 2014, "cada geração testemunha o fim de um mundo e o começo de outro". O discurso solene continua em seu texto de apresentação desta edição 2022, sublinhando que "a guerra também começa com uma perversidade da narrativa, com o discurso nacionalista, a colonização da memória e a falsificação da herança cultural; são histórias doentias que só outras histórias mais corretas poderão contrabalançar", destaca Py.

"Resiliência"

Para Olivier Py, esta edição do festival fala sobretudo de "resiliência", como destacou em entrevista à RFI. "É a resiliência dos artistas que viram suas apresentações canceladas, e às vezes sua relação com o público comprometida. Mas, no fim, no Festival de Avignon, o público nunca desistiu do teatro. Vimos isto no ano passado. O público está sempre presente, fiel e fervoroso. É no público que mora a nossa força", destacou. 

No menu principal dos 46 espetáculos da programação principal (o "In"), o destaque vai para "O monge negro" ("Le moine noir"), espetáculo dirigido por Kirill Serebrennikov, considerado um dos maiores artistas russos da sua geração. Diretor de teatro e cinema à frente de seu tempo, ele já dizia "não à guerra" durante o Festival de Cannes este ano,  quando foi intensamente aplaudido pela plateia francesa. Militante pró-democracia e pró-LGBTQIA+ perseguido pelo regime de Vladirmir Putin, Serebrennikov chegou a ficar em prisão domiciliar na Rússia durante um ano, acusado de "desvio de dinheiro".

Este ano em Avignon, o diretor russo escolheu apostar no tema da loucura investigado pelo dramaturgo e novelista Anton Tchekhov, seu conterrâneo, em um conto sombrio e pouco conhecido do autor russo, "que retrata personagens capturados no 'círculo infernal' de verdades individuais". A peça abre a programação do festival nesta quinta-feira (7)  na tradicional "Cour d'Honneur", instalada na arquitetura medieval do Palácio dos Papas, palco nobre no "chão sagrado" do Festival de Avignon, desde que foi criado por uma verdadeira referência do teatro e do cinema francês, o legendário ator, autor e diretor Jean Vilar, em 1947.

Olivier Py destaca também a multiculturalidade desta edição 2022. "Este ano, há uma presença muito forte do Oriente Médio, por exemplo, com quatro espetáculos palestinos. É quase um foco na Palestina, com a peça de Elias Sanbar ("Et la terre se transmet comme la langue"), que celebra [o poeta palestino] Mahmoud Darwich, e o espetáculo de Bashar Murkus, "Milk", que vive e trabalha em Haifa", declarou.

Completam ainda os destaques desta edição do festival peças como "En Transit", do autor iraniano Amir Reza Koohestani; "Iphigénie", texto do diretor português Tiago Rodrigues [que assume a direção do Festival de Avignon em 2023], inspirado do texto clássico da tragédia grega e dirigido por Anne Théron; "Ma Jeunesse Exaltée" ("Minha Juventude Exaltada"), de Olivier Py; "A Tempestade", de Shakespeare, com direção de Alessandro Serra, ou ainda "One Song", da artista belga e revelação da cena contemporânea Miet Warlop. 

E é o próprio Olivier Py quem fecha a programação do evento, no dia 26 de julho, com "Miss Knife e suas irmãs", retomando o alterego que o acompanha há cerca de 30 anos. Em cena, ele terá a companhia do cabaré noir das artistas ucranianas do grupo cênico-musical Dakh Daughters.