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Artistas brasileiros celebram legado de Nelson Freire no Festival Internacional de Piano da França

07/08/2022 18h46

Ele se apresentou nada menos do que 24 vezes no tradicional Festival Internacional de Piano de la Roque d'Anthéron, no sul da França, onde todos se lembram pelo menos uma boa história sua. Nelson Freire foi homenageado neste domingo (7) com um grande concerto na programação do evento francês, transmitido ao vivo pela rádio pública France Musique, e reunindo um elenco especial de estrelas do piano brasileiro, onde a admiração por Freire é unanimidade, além das sonoridades dessa memória.

Ele se apresentou nada menos do que 24 vezes no tradicional Festival Internacional de Piano de la Roque d'Anthéron, no sul da França, onde todos se lembram pelo menos uma boa história sua. Nelson Freire foi homenageado neste domingo (7) com um grande concerto na programação do evento francês, transmitido ao vivo pela rádio pública France Musique, e reunindo um elenco especial de estrelas do piano brasileiro, onde a admiração por Freire é unanimidade, além das sonoridades dessa memória.

Encrustrado em plena região de Provence bem no meio das cadeias de montanhas do Massivo do Luberon e dos vinhedos do vale de la Durance, acontece há mais de 40 anos o Festival Internacional de Piano de la Roque d'Anthéron, reunindo em recitais e concertos os maiores nomes do piano de todo o mundo. Neste domingo (7), o palco principal de la Roque contou com um tempero especial, sob o céu estrelado de verão no sul da França: seis grandes nomes do piano brasileiro homenagearam o mestre Nelson Freire, encontrado morto em seu apartamento em novembro de 2021 no Rio de Janeiro.

Eles voltaram à cena várias vezes, puxados pelas palmas da plateia francesa, depois do impressionante trio de pianos a 12 mãos que fechou com chave de ouro a apresentação de Clélia Iruzun, Eduardo Monteiro, Cristian Budu, Fabio Martino, Juliana Steinbach e Pablo Rossi. "Foi uma noite digna de Nelson Freire", celebrou o crítico francês do Le Monde e grande amigo do pianista brasileiro, Alain Lompech, em entrevista à RFI.

"Nelson era um grande amigo do festival, esteve aqui diversas vezes, ele adorava tocar no meio da natureza, entre os plátanos de la Roque d'Anthéron", lembrou o diretor do evento, René Martin. "Desde que recebi a triste notícia em novembro do ano passado, tive a ideia de fazer uma noite cheia de luz e amor, porque ele era excepcional, um dos maiores entre todos os grandes intérpretes do século 20", disse.

"Encontrei Nelson pela primeira vez aqui", conta o afinador de pianos belga Denijs de Winter, que há 38 anos garante a precisão sonora dos valiosos instrumentos desse encontro internacional. "Eu já trabalhava com a Martha [Argerich, parceira de piano e grande amiga de Freire]. Evidentemente, falar de Martha é falar de Nelson. Falamos muito sobre piano, mas também sobre o Rio e o Brasil", testemunha Winter, antes da homenagem no sul da França.

"Um afinador de piano necessariamente presta muita atenção nas mãos de um pianista, como elas tocam o teclado do piano, de que maneira e com que intensidade", conta o técnico. "As dele não eram grandes, mas tinham uma maneira surpreendente de passear pelo instrumento. Era uma leveza, a gente não tinha a impressão de que ele sequer tocava as teclas. Ele dançava sobre o teclado, era muito bonito", lembra, emocionado.

"Não tenho a impressão de que ele era perfeccionista. Para ele, a musicalidade vinha antes de tudo. Por exemplo, temos sempre diversos pianos à disposição para os artistas aqui no festival, mas ele nunca ficava muito tempo neles, testava um ou dois, era uma escolha fácil para ele. No entanto, sempre senti no Nelson um pouco de angústia [antes de entrar em cena], como se ele duvidasse que estivesse à altura do que esperavam dele", lembra o profissional belga, que guarda com carinho a última foto do amigo brasileiro, feita antes de entrar em cena, em julho de 2019, antes de tocar com a Filarmônica de Montecarlo no Festival de la Roque d'Anthéron.

Há exatamente 40 anos, em agosto de 1982, Nelson participava pela primeira vez do evento francês, num duo com a pianista argentina Martha Argerich.

Nelson Freire e Guiomar Novaes, ícones do piano

A série de recitais em homenagem a Freire foi aberta neste domingo (7) pelo duo de brasileiros Fabio Martino e Juliana Steinbach, com A Folia de um Bloco Infantil, de Villa-Lobos. Juliana Steinbach focou sua participação solo em Villa-Lobos (Festa no Sertão) e Schumann (Fantaisie opus 17, primeiro movimento), mas começou com uma peça muito especial: "Abri meu recital solo aqui com Orfeu e Eurídice, de Gluck, que era o bis emblemático do Nelson Freire e da [icônica pianista brasileira e professora de Freire] Guiomar Novaes", conta Steinbach.

"Então é uma espécie de código entre eles e eu, entre nossas almas... A primeira vez que dividi um concerto com Nelson, era um recital onde ele tocava a primeira parte e eu a segunda, num desejo dele de me apresentar ao público. Foi em Ilhabela, no litoral de São Paulo", lembra. "Ele tocou a primeira parte do concerto, e estranhamente não fez o bis com o Gluck. Perguntei o porquê, e ele muito generosamente me disse que tinha deixado para mim", emociona-se Steinbach.

"Quando recebi o convite para fazer esse recital em homenagem ao Nelson, fiquei muito feliz, porque ele era e ainda é muito especial. Ele e a Martha [Argelich] são referências para as novas gerações no Brasil, assim como Arnaldo Cohen e Cristina Ortiz", diz o pianista Fabio Martino. 

"Ele teve uma grande influência não apenas para os brasileiros, mas acredito que no mundo. Ele é ainda. Tanto é que estamos lembrando dele com tanto carinho e emoção neste concerto na França", completa Martino, que se apresentou individualmente com Dança Brasileira e Dança Negra, de Guarnieri, além de 3 Danzas Argentinas, de Ginastera.

"Poeta, com P maiúsculo"

No sábado (6), Cristian Budu, celebrado pela crítica como um pianista de grande maturidade musical e considerado pelo próprio Freire como uma espécie de "sucessor" natural, antecipou a homenagem ao pianista brasileiro com um repertório tipicamente "Freiriano", abrindo com Schumann (Arabesque en ut majeur opus 18 e Kreisleriana opus 16, esta última uma das peças preferidas de  Nelson Freire) e, na sequência, Estampes, de Debussy, fechando com Villa-Lobos. Neste domingo, Budu tocou em duo com seu ex-professor, o pianista Eduardo Monteiro, as Valsas n° 3, 7, 11 e 15 de Brahms, além de apostar em compositores como Guarnieri e Schumann em seu recital solo. 

"Nelson era um poeta, com P maiúsculo", disse Budu à RFI. "Essa maneira de lidar com a linguagem é cada vez mais raro, sinceramente. Com certeza, ele ouvia 'ideias'. Ele fala 'ideias' através do som", afirmou a revelação do piano brasileiro.

Compartilha a admiração a pianista Clélia Iruzun, que dividiu o palco com Pablo Rossi, integrando o estrelado elenco do piano brasileiro nessa homenagem. "Conheço o Nelson desde os 13 anos. A vida inteira estive com ele, toquei para ele, ele me visitava em Londres, eu ia me encontrar com ele no Rio e em Paris. Tivemos uma amizade longa", conta Clélia Iruzun. "Uma vez eu estava na casa dele, no Rio, ele estava mexendo em algumas músicas e encontrou essa suíte Andalucia, do [Ernesto] Lecuona, e me perguntou se eu conhecia", recorda.

"Como eu disse que não, ele me deu a partitura de presente, e disse 'toma, essa música vai fazer sucesso com você'. Por isso escolhi duas peças dessa suíte que ele me deu para homenageá-lo hoje", lembra a pianista em tom emocionado. "Não tem um dia que passe que a gente não sinta falta do Nelson. (...) Escolhi também Barcarolle do Chopin, uma peça que já toquei também para o Nelson, o programa escolhido fala muito sobre o universo dele. Nelson era 'a Música', acho que essa seria a melhor descrição dele", define a artista.

"Escolhi para o recital solo apenas autores brasileiros, acho importante poder trazer aqui para a França esse repertório. É muito prazeroso de escutar, e temos poucas chances de ouvir essas peças por aqui", afirmou o pianista Eduardo Monteiro. "Toquei de Mignone o primeiro movimento da Sonata n°1 e duas peças de Villa-Lobos, Homenagem a Chopin e Impressões Seresteiras. Na parte coletiva, toco com o Cristian [Budu] a dois pianos algumas valsas de Brahms. O Nelson [Freire] tinha um repertório gigantesco, muito eclético. Acho que ele chegou a um patamar de excelência e de reconhecimento no cenário internacional que se permitia, principalmente no final da vida, tocar as peças que eram realmente especiais para ele", conclui Monteiro.

O 42° Festival Internacional de Piano de la Roque d'Anthéron fica em cartaz no sul da França até o dia 20 de agosto de 2022.