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Quênia vota com cédula de papel, mas biometria faz das eleições uma das mais caras do mundo

09/08/2022 08h19

Mais de 22 milhões de quenianos são chamados a irem às urnas nesta terça-feira (9) para escolher quem governará uma das maiores economias africanas pelos próximos cinco anos. Ao todo são mais de 16 mil candidatos a diferentes cargos, inclusive regionais, mas apenas quatro deles disputam o posto de presidente deste país ao leste do continente africano.

Vinícius Assís, correspondente da RFI na África

É o menor número de candidatos desde o início dos anos 1990. A disputa presidencial está bem acirrada entre os dois favoritos: o atual vice-presidente, William Ruto, de 55 anos, que tem um discurso mais popular, ressaltando suas origens humildes, e o veterano da oposição Raila Odinga, 77, que vem de uma dinastia política e foi derrotado nas eleições de 1997, 2007, 2013 e 2017.

Mas, de acordo com a última pesquisa divulgada pela francesa Ipsos, é a coligação de Odinga que detém 47% das intenções de votos. Já seu principal adversário tem 42%.

Com as desavenças aparentemente deixadas no passado, Odinga tem, desta vez, o apoio do atual presidente, Uhuru Kenyatta, que, pela constituição, não pode tentar um terceiro mandato consecutivo, e se empenha para não ter que passar o cargo ao próprio vice. Os dois são de etnias diferentes: Odinga é de origem Luo, e Kenyatta, Kikuyu.

Em um país onde, principalmente entre os mais tradicionais, questões étnicas quase sempre norteiam escolhas políticas, a aliança entre os dois pode ser um grande indicador de que Odinga tem chances reais de vencer a quinta eleição que disputa. A população queniana é bem diversa, formada por mais de 40 grupos étnicos.

No sábado (6), oficialmente último dia de campanha, Raila Odinga viu mais da metade dos 60 mil assentos do Estádio Moi Sports Centre, em Nairóbi, ocupados por seus apoiadores. Enquanto isso, William Ruto usou os últimos momentos de campanha para discursar nas ruas, falando para uma multidão ao circular em um carro aberto.

Segundo turno

Há a expectativa de que, pela primeira vez na história, o Quênia possa ter um segundo turno, caso nenhum dos candidatos ganhe com 50% dos votos válidos mais um, além de pelo menos 25% dos votos em 24 dos 47 condados do país.

A última eleição, em 2017, teve o resultado anulado pela Suprema Corte do Quênia. E com o boicote da oposição, o atual presidente, Uhuru Kenyatta, venceu a nova votação dois meses depois. Para o embaixador do Brasil em Nairóbi, Silvio Albuquerque, na capital prevalece a torcida para que não haja um segundo turno.

"Em conversas minhas com acadêmicos, embaixadores, a intelectualidade queniana, há uma certa unanimidade: o melhor cenário seria uma eleição que resultasse em vitória no primeiro turno, e essa vitória sendo aceita pelo derrotado. Mas este cenário é pouco provável", acredita Albuquerque.

Apesar das cotas para promover a igualdade de gêneros entre os candidatos, nenhuma mulher disputa a presidência este ano. O Quênia pode, no entanto, ter sua primeira vice-presidente: Martha Karua, ex-ministra da Justiça, que integra a chapa de Odinga.

Para o embaixador do Brasil em Nairóbi, "ter uma mulher, e não é qualquer mulher, como companheira de chapa do candidato mais forte para a vitória eleitoral é um dos fatos mais inovadores dessas eleições". Albuquerque também destaca que combater a violência contra as mulheres ainda é um desafio para o Quênia, nação com forte tradição patriarcal, apesar das políticas públicas implementadas nos últimos anos. Vale lembrar que o país abriga a sede da ONU no continente africano.

Uma das eleições mais caras do mundo

Com o país desembolsando cerca de US$ 380 milhões para organizar a eleição, o pleito está sendo considerado um dos mais caros realizados no mundo recentemente. A despesa será de US$ 17 por eleitor. Para se ter uma ideia, em 2021, Uganda gastou o equivalente a US$ 13 por eleitor para organizar a eleição do seu país. A Nigéria, maior economia do continente e com uma população semelhante a do Brasil, deve gastar US$ 9 por cada eleitor no pleito do ano que vem, o mesmo que a Índia gastou na votação de 2019.

Nas eleições gerais de 2017, o Reino Unido desembolsou o equivalente a US$ 4 por eleitor, de acordo com a imprensa internacional. Um dos motivos apontados para justificar o alto custo é o investimento em tecnologia. São mais de 46 mil locais de votação espalhados pelo país para que os eleitores depositem seus votos, em cédulas de papel. Mas a identificação é por sistema de biometria.

Esta não será a primeira eleição com identificação digital. A tecnologia foi usada no país em 2013, quando houve falhas no sistema em 55% dos locais de votação, e em 2017, quando os problemas com os equipamentos fizeram a Suprema Corte anular a eleição. A imprensa local afirma que a Comissão Eleitoral Independente e de Fronteiras estaria desembolsando desta vez US$ 31 milhões pelos equipamentos de uma nova empresa, da Holanda.

"Há sim temores de que as reformas que foram feitas no sistema para evitar os problemas que tivemos em 2013 e 2017 não sejam suficientes para prevenir novos problemas, e que possam resultar em contestação judicial. E isso é preocupante", destacou o embaixador brasileiro. O resultado da votação desta terça-feira deve ser anunciado até o dia 16.

Receio de violência

Esta eleição está sendo acompanhada por observadores internacionais, como da União Africana e União Europeia. Por conta da votação, um feriado nacional foi determinado nesta terça-feira. Supermercados alertaram a população sobre a precaução de se estocar comida, uma vez que já houve eleições anteriores bem conturbadas e violentas. Os conflitos que surgiram no país depois da eleição de 2007 resultaram em mais de mil mortes. Outras dezenas de pessoas morreram na ocasião da votação de 2017, depois de abordagens policiais violentas em resposta ao clima caótico que se instalou.

As autoridades estão de olho nos integrantes de grupos armados - normalmente com facões - que, em troca de dinheiro, se preparam para intimidar eleitores e propagar o caos. Para garantir a segurança, 150 mil policiais foram designados para patrulhar as ruas, onde, até segunda-feira (8), o clima era de "confiança e relativa tranquilidade", afirma o embaixador Silvio Albuquerque.

"As lembranças dos fatos ocorridos nas eleições de 2017 ainda estão presentes em boa parte da população. Então, eu diria que é uma confiança na maturidade do eleitorado, do cidadão queniano, depois de duas grandes tragédias [durante os processos de votação]", afirmou.

Desafios do próximo governo

A agricultura representa mais de 20% do PIB do país, famoso por seus safáris e belas praias. A economia vem dando pequenos sinais de recuperação após o impacto negativo da pandemia. Mas o tema ainda é uma grande preocupação da população, porque economicamente o país também foi afetado pela guerra na Ucrânia. Boa parte da produção local de chás dos últimos anos foi exportada para a Rússia.

Atualmente os preços de alimentos, fertilizantes e combustíveis estão aumentando nesta ex-colônia britânica que conquistou sua independência em 1963. A inflação em junho chegou a 7,9%, mas itens importantes do dia a dia dos quenianos subiram muito mais que a inflação nos últimos meses. O óleo de cozinha, por exemplo, está 52% mais caro do que no ano passado, de acordo com o Escritório Nacional de Estatísticas do Quênia. O governo vem subsidiando o preço dos combustíveis, o que vem sobrecarregando suas finanças. O aumento atual da dívida pública também será um dos grandes desafios do próximo presidente.

A desigualdade social, infelizmente, também figura entre as "especialidades" no Quênia, e reduzir essas diferenças pode se revelar outro importante desafio ao próximo chefe de Estado. Em se tratando de infraestrutura, dados do Banco Mundial apontam que o país tem mais habitantes com acesso à energia elétrica e internet do que suas nações vizinhas. Nômades digitais que viajam pela África classificam Nairóbi como uma capital moderna, cara e com uma internet veloz.

O país fica na região conhecida como "chifre da África", que enfrenta sua pior seca em 40 anos. Isso também coloca as mudanças climáticas como uma das preocupações dos eleitores, que defendem urgentemente o combate à corrupção. Dois temas importantes, principalmente para os mais jovens. Com uma população de aproximadamente 50 milhões de habitantes, 75% dos quenianos têm menos de 35 anos, e muitos declaram querer uma renovação na política do país.

Relação Brasil-Quênia

De acordo com o embaixador Silvio Albuquerque, no cargo há nove meses, o governo brasileiro não tem um candidato favorito na eleição queniana. "Ao Brasil interessa que o processo eleitoral seja pacífico e que confirme a solidez da democracia de um país-chave em uma região do mundo extremamente conturbada", afirmou, lembrando que o Brasil tem representação diplomática no Quênia desde 1967. Albuquerque afirma que a continuidade de um processo político sólido e maduro no Quênia tende a inspirar países vizinhos que enfrentam crises internas, como Sudão do Sul, Etiópia e Somália.

Por fim, o embaixador destaca o imenso potencial do Quênia para negócios, mas também sublinha o profundo desconhecimento, de empresários e de setores públicos do Estado brasileiro, em relação à região. "O Quênia é um país-chave para a inserção do Brasil em uma área do mundo que desperta profundo interesse geopolítico e econômico das grandes potências".