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Historiadora brasileira resgata história esquecida da ocupação da Guiana Francesa por Portugal

16/08/2022 07h56

Ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1808, após a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte, o príncipe regente D. João declara guerra à França e determina a ocupação da Guiana Francesa. Mais que isso, ele pede a todos os seus súditos que sejam hostis aos franceses, como forma de retaliação.

Essa é uma das hipóteses para a disputa entre os dois países pela Guiana Francesa apresentada pela historiadora Ivete Machado no livro Une histoire oubliée, la Guyane française sous l'occupation portugaise (1809-1817) (Uma história esquecida, a Guiana Francesa sob a ocupação portuguesa), publicado este ano na França. Ela conta como surgiu o interesse em trazer à tona a história da colônia francesa na América do Sul.

"A história da invasão da Guiana [Francesa] pelos portugueses é pouco conhecida pelos historiadores dos dois lados do Atlântico - franceses, portugueses e brasileiros. Na minha dissertação de mestrado, eu havia trabalhado com a Guiana neste período da ocupação, de 1809 a 1817, mas foquei meu estudo em uma fazenda de especiarias, que era propriedade do governo francês e que se chamava La Gabrielle. Enquanto trabalhava na dissertação, vi que havia uma documentação muito rica sobre o período da ocupação e que nunca havia sido analisada por historiadores. Então eu resgatei a Guiana e o período da ocupação portuguesa desse esquecimento", explica.

Interesse geopolítico

Machado conta que existe ainda uma segunda hipótese para explicar o que motivou o interesse de Portugal pela colônia, que é a definição da fronteira entre a Guiana Francesa e o Grão-Pará. Para ela, o Tratado de Utrecht, de 1713, havia definido a fronteira comum no Rio Oiapoque, mas os franceses foram ganhando terreno ao sul até quase o Rio Amazonas. E Portugal, pressionado pelas Guerras Napoleônicas, havia reconhecido o novo limite. Ao chegar no Rio de Janeiro, o príncipe regente declarou nulos todos os tratados que tinha assinado com a França sobre o estabelecimento da fronteira entre a Guiana Francesa e o Brasil.

"A América portuguesa, que era o Brasil na época, e a Guiana eram colônias de duas potências que estavam em guerra na Europa. E quando a França consegue mudar essa fronteira, com perda de território português, ficou claro que era preciso afastar os franceses da América", ela continua.

Ocupação singular

Inicialmente, o objetivo das tropas portuguesas que saíram de Belém era apenas reestabelecer a fronteira no rio Oiapoque, mas no meio do caminho recebem a ordem para invadir o território francês. Assim, Ivete Machado destaca que a invasão e a consequente ocupação de Portugal foi singular. A dominação portuguesa durou nove anos e terminou em 1815 com a queda de Napoleão Bonaparte e a devolução do território à França após o Congresso de Viena.

"A invasão não teve o objetivo de aumento de território, a América já era um continente. E outra singularidade é que não houve um envio de colonos, o país não foi colonizada por civis. Todo o pessoal português que estava na Guiana era militar. A invasão foi atípica também pelo tipo de administração, porque na Guiana foi seguido o modelo francês", descreve a historiadora.

Em sua opinião, a Guiana sempre foi considerada uma colônia pobre porque era subdesenvolvida, era uma "colônia menor" do império francês, que havia perdido São Domingos, no Haiti, que já era independente, mas que contava ainda com Guadalupe, Martinica e algumas ilhas do Oceano Índico.

"Em 1763, quando houve a Guerra dos Sete Anos e a perda do Canadá e de diversas colônias, a França tentou fazer uma colonização branca na Guiana e não deu certo, 10 mil pessoas morreram. Eu acredito também na hipótese de que, antes da invasão portuguesa, houve uma guerra entre a administração francesa e os colonos. Assim, quando os portugueses invadiram, acredito que tenha sido um alívio para esses colonos, que ficaram livres desse administrador, porque, no início da administração, os colonos ajudaram muito os portugueses, já que a conquista não teve planejamento", ela supõe.

O livro de Ivete Machado é resultado da tese de doutorado "A Guiana Francesa durante a ocupação portuguesa: administração, sociedade e economia (1809-1817)", defendida em Paris, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS).