Chile reduziu a jornada semanal de trabalho; quais são os impactos?
Após seis anos de tramitação no Congresso chileno, o projeto de lei que reduz a carga de trabalho no país de 45 para 40 horas semanais foi aprovado pelos deputados.
O texto agora deve ser promulgado pelo presidente Gabriel Boric e adotado pelas empresas em até cinco anos. Para especialistas, mais do que efeitos políticos, a medida vai impactar a economia.
Para milhões de trabalhadores chilenos, o projeto representa mais tempo para estar com a família, desenvolver outras atividades ou descansar. Estes foram os argumentos mais usados pelos congressistas sobre a medida que reduz a carga semanal de trabalho.
A iniciativa foi aprovada em última instância pela Câmara dos Deputados na última terça-feira (11), por 127 votos a favor e 14 contra. O texto, que reforma o artigo 22 do Código do Trabalho do país e que já havia sido aprovado pelas comissões da Câmara e pelo Senado, retornou à Câmara para o terceiro e último trâmite legislativo na terça-feira.
O projeto foi apresentado em 2017 pela deputada Karol Cariola (Partido Comunista) e outros seis ex-deputados. Entre eles, Camila Vallejo, que hoje faz parte do governo de Gabriel Boric como ministra porta-voz.
O projeto de lei incluiu longos debates e discussões entre os parlamentares, sindicatos e associações empresariais. No total, foram necessários seis anos até a obteção do texto final.
Com a aprovação, a lei agora segue para promulgação presidencial, que deve acontecer no dia 1o de maio, no Dia do Trabalho. "É um projeto pró-família, meninos e meninas precisam mais dos pais.
Precisamos ordenar a sociedade de maneira diferente, de uma forma mais humana. O trabalho consome muitas vezes a vida das pessoas, quando deveria dignificar, deveria permitir-nos a realização pessoal e coletiva", disse Camila Vallejo.
Aumento de licenças médicas
Segundo o último relatório divulgado pela Superintendência de Segurança Social, uma instituição governamental autônoma no Chile, em 2021 as licenças médicas aumentaram 40% em relação ao ano anterior.
No total, neste anos, foram emitidos mais de 8,5 milhões de atestados, sem relação com acidentes de trabalho, o que representa um aumento de 60% em relação aos últimos cinco anos.
As doenças mentais representam 29% das licenças, seguidas pelas doenças relacionadas à Covid-19 (19% das causas). "No Chile, praticamente um terço das licenças médicas são por motivos psicológicos e dois terços delas atingem mulheres.
Ouso afirmar que uma proporção significativa desse número tem relação com situações de trabalho e/ou conflito entre trabalho e vida pessoal", explica Carlos Díaz, doutor em Psicologia e acadêmico do Departamento de Psicologia da Universidade do Chile.
A nova lei, diz, representa avanços, mas ele também faz ressalvas. "Ainda há muito a ser feito. Deve-se estabelecer um melhor equilíbrio entre trabalhadores e empresas na definição da organização do trabalho e, neste caso, dos horários de trabalho", diz.
"O fortalecimento das organizações sindicais é um dos caminhos que contribui para isso. Da mesma forma, em consonância com o que foi dito anteriormente, é importante desenvolver formas de trabalho que deem um sentido à atividade. O trabalho deve significar mais do que poder pagar as contas. A apropriação social dos espaços de trabalho não só traz benefícios em termos de saúde mental, mas também tem efeitos favoráveis —na funcionalidade dos sistemas de trabalho", explica Díaz.
Mudança gradativa
Embora represente uma boa notícia imediata para os trabalhadores formais, a redução vai ser aplicada de forma progressiva pelos próximos cinco anos. Para a ministra do Trabalho e Previdência Social, Jeannette Jara, trata-se de uma vitória dos chilenos.
"Quando os cidadãos endossam uma bandeira por maior proteção e qualidade de vida, isso se torna realidade. É por isso que valorizamos até aqueles que se opuseram, mas deram o passo e sentaram para conversar. Esperamos que o mesmo espírito prevaleça na necessária reforma da Previdência", afirmou a ministra que liderou as negociações com a oposição e com diferentes setores empresariais para conseguir um acordo transversal.
Segundo o último boletim emitido pelo Instituto Nacional de Estatísticas do Chile, a população economicamente ativa no país é formada por cerca de 9 milhões de pessoas e cerca de 4 milhões serão beneficiadas pela nova legislação. Vale ressaltar que o Chile tem mais de 2,4 milhões de trabalhadores informais.
Com a reforma, o Chile se une ao Equador e à Venezuela como os únicos países da América Latina a ter uma legislação que estabelece 40 horas de trabalho por semana. Na região, Brasil, El Salvador e Guatemala têm jornadas estabelecidas por lei de 42 a 45 horas.
Já na Argentina, Bolívia, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Peru e Uruguai, México e Colômbia, os trabalhadores podem passar até 48 horas semanais trabalhando, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho.
A mudança na legislação prevê a possibilidade de distribuir a jornada de trabalho tradicional (cinco dias de trabalho por semana para dois de descanso) por um regime que seja de quatro dias trabalhados e três de descanso.
Mas a flexibilização, em alguns casos, pode apresentar efeitos ruins em termos de saúde mental. "Os plantões podem chegar até 52 horas semanais e a compensação nas folgas pode não ser suficiente para permitir a recuperação adequada das pessoas", explica Carlos Díaz.
Outro ponto da legislação contempla a criação de faixas horárias que permitam entradas e saídas diferenciadas no trabalho, adaptáveis —em até duas horas.
Este ponto beneficia pais e responsáveis com filhos menores de 12 anos e busca facilitar a conciliação dos horários dos estabelecimentos de ensino com o trabalho, melhorando as condições de estabilidade no emprego, principalmente para as mulheres.
Parlamentares de direita votaram contra
No salão nobre da Câmara, a iniciativa contou com o apoio de parlamentares do partido Democracia Cristã e do Partido da Gente. A maioria dos deputados da coligação de oposição de centro-direita, Chile Vamos (UDI, RN, PRI e Evópoli), também votaram a favor da proposta.
Apenas parlamentares de direita e extrema direita, do Partido Republicano e alguns da UDI, votaram contra.
"Felizmente, creio que existe um setor político que conseguiu fazer uma reflexão sobre a importância de se fazer um projeto de lei que tenha um incentivo muito claro e fundamental: cumprir uma das recomendações da OIT que data de 1932, que tem a ver com o estabelecimento de jornadas de trabalho de 40 horas ou menos", disse a deputada Karol Cariol (Partido Comunista).
Cariol também criticou o governo anterior, do presidente de direita Sebastián Piñera, especialmente seu ex-ministro do Trabalho e Previdência Social Nicolás Monckeberg, que foi contra a proposta enquanto esteve no governo.
Em agosto de 2022, já no governo de Gabriel Boric, parlamentares oficialistas reativaram o projeto na Comissão de Trabalho e Previdência Social do Senado, introduzindo novos indicadores ao texto.
Para Miguel Ángel López, doutor em Ciência Política e acadêmico do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, o processo de aprovação da nova lei pode ser considerado como um triunfo para o governo, já que era um dos pontos do plano de Boric, mas não deve impactar na popularidade do seu governo.
"As pessoas estão mais preocupadas com outros temas como a crise econômica, segurança e imigração".
De acordo com o acadêmico, a aprovação da nova lei não foi surpresa, já que acordos e diálogos já haviam sido acertados nos bastidores. "Na verdade, muitos empresários já estavam com a ideia de promover mais capacitação e reduzir a jornada de trabalho porque se trata de uma tendência mundial", finalizou López.
Octavio Avendaño, doutor em Ciências Políticas e acadêmico da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile disse que "esse é um tema que não vai repercutir muito porque os favorecidos compõem uma parcela limitada da população em sua maioria trabalhadores do setor privado e que têm contrato", diz.
"Em contrapartida, não são beneficiados os trabalhadores do setor público, por exemplo, que tem crescido mais nos últimos anos do que o privado. Essa mudança na lei dá aos empresários a possibilidade de flexibilizar a jornada em relação às horas trabalhadas", declarou.
Segundo um último levantamento feito pela consultoria Cadem, 71% dos entrevistados acreditam que o combate à criminalidade deve ser prioridade do presidente Gabriel Boric. Em menos de quatro semanas, três policiais morreram em serviço.
Efeito econômico
Mais do que efeitos políticos, a medida vai impactar a economia. A Câmara Nacional de Comércio qualificou de positiva a aprovação do projeto e destacou o "diálogo social" que o tornou possível.
Já a Associação das Indústrias Metalúrgicas alertou que os custos de produção deverão subir cerca de 10% devido à contratação de mais mão de obra e indicou que "nem todas (as empresas) vão conseguir resistir".
"Os principais riscos econômicos que a redução da jornada de trabalho para 40 horas poderia, eventualmente, gerar, seriam uma diminuição da produtividade e uma maior dificuldade na organização do trabalho, sobretudo no caso de pequenas e médias empresas", disse Ana María Fernández Marín, doutora em Ciências do Trabalho, pesquisadora do Centro de Organizações e Relações Laborais e acadêmica da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade Alberto Hurtado.
Para a acadêmica, a mudança na legislação trabalhista chega em um bom momento e pontua a grande destruição de postos de trabalho, especialmente femininos, no contexto da pandemia da Covid-19, "e deve promover uma recuperação, garantindo que o emprego não seja precário".
Sobre produtividade, ela comenta que, embora os desafios estejam localizados principalmente nas empresas, políticas públicas devem ser determinantes.
"O último relatório da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2022), nos mostra que o Chile é o país mais inovador da América Latina, mas continuamos com desafios significativos na diversificação produtiva, financiamento e escala. É fundamental apostar em setores prósperos, onde o Chile tem uma vantagem competitiva, como energia renovável, indústria de lítio ou serviços. Mas, não resta dúvida de que é necessário um maior apoio do Estado, com pacotes coordenados que permitam direcionar esforços tanto por atividade econômica quanto por tamanho da empresa", finaliza.
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