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Pacientes denunciam esquema envolvendo dentistas brasileiros e portugueses em bairro nobre de Paris

O caso também chama a atenção pelos aspectos financeiros e a suspeita de fraude no sistema de seguridade social - iStock
O caso também chama a atenção pelos aspectos financeiros e a suspeita de fraude no sistema de seguridade social Imagem: iStock

Da RFI

14/06/2023 15h45Atualizada em 14/06/2023 22h18

Aumenta a cada dia o número de pacientes de um consultório dentário parisiense que denunciam as práticas de um cirurgião que desapareceu sem terminar os tratamentos. Alguns perderam apenas dinheiro, mas outros não conseguem mais comer ou falar normalmente após as intervenções, realizadas quase sempre por dentistas brasileiros que atuavam sem registro. A clínica está ligada ao grupo Swiss Dental, que já foi denunciado em Portugal, suspeito de empregar profissionais que não tinham o direito de exercer no país.

"É um dos bairros mais chiques de Paris". Essa é uma das frases mais frequentes entre os pacientes que entraram no consultório dentário situado na rua de Rivoli, em um belo prédio construído em 1810. Situado em frente ao jardim de Tuilleries, a alguns passos do museu do Louvre e não muito longe da Place Vendôme, onde estão as principais joalherias da capital, ou do Palácio do Eliseu, sede da presidência francesa, o endereço em uma das áreas mais nobres da cidade causava sempre uma boa impressão nos pacientes, que viam o local como uma espécie de garantia de serviços de qualidade.

"Chegamos a dizer que era bom demais para ser verdade", desabafa Cindy Barata, em entrevista à RFI. Em meados de 2022, a franco-portuguesa residente na região parisiense procurava um tratamento para o marido, o português Manuel Eusébio Leal, que sofria com problemas dentários. Após dias de pesquisa, encontraram um anúncio na internet sobre a Swiss Dental, uma rede de clínicas baseada no Porto. "Como temos uma casinha em Portugal, achei que poderia ser interessante", conta, ressaltando que os preços oferecidos pela empresa eram bem inferiores aos praticados pelos profissionais na França. "Mas quando a atendente notou que eu tinha um sotaque francês, me disse que tinham uma filial em Paris".

Foi assim que o casal marcou sua primeira consulta e encontrou o cirurgião português Francisco Barbosa na capital francesa. "Ele disse que tinha um bocado de trabalho [a ser feito], que eu tinha dentes bons, mas que uma parte estava danificada", detalha Eusébio. "E disse que tinha uma solução: tirar tudo e colocar uma prótese".

Após essa consulta, o casal recebeu um orçamento de cerca de 6 mil euros (mais de R$ 30 mil) e a promessa de que uma parte poderia ser reembolsada pelo serviço de seguridade social e pelo convênio médico - algo habitual no sistema de saúde francês. O valor era alto para o bolso de Eusébio, que trabalha na construção civil, mas era bem inferior aos montantes praticados por outros profissionais na França, e o casal decidiu iniciar o tratamento.

Mas, rapidamente, como Cindy e Eusébio não aceitaram pagar uma parte do valor em dinheiro vivo, como solicitado pelo consultório, a fatura subiu para mais de 9 mil euros (R$ 47 mil). "Aumentaram porque nos recusamos a pagar em líquido", analisa a esposa, retrospectivamente. "Mas meu marido estava com medo que seus dentes caíssem e achou que não tinha escolha". Eusébio deu um cheque de caução de 6.300 euros (cerca de R$ 33 mil) e começou a pagar mensalidades de cerca de 500 euros (R$ 2.600).

Jovens brasileiros

"Depois disso, nunca mais vimos o tal doutor Barbosa na rue de Rivoli", relata Cindy. A operação, como todo o pré e pós-operatório, foram realizados por dentistas brasileiros e portugueses. "Chamou a minha atenção o fato de que todos eram jovens", conta. Já Eusébio se lembra apenas que os dentistas diziam não poder ficar até tarde no consultório, pois tinham que pegar um avião no final do dia. "Acho que eles trabalhavam uma semana, faziam o que tinham que fazer e depois partiam", tenta analisar o português.

Mas para ele, a única coisa que importava era o resultado, independentemente do local de residência dos profissionais. "Eu fiquei satisfeito, pois não gostava do meu sorriso. E quando me vi com outro sorriso, foi bonito", resume Eusébio, contente com sua prótese, mesmo que ainda provisória.

A história do casal teria tido um final feliz se, ao tentar marcar uma consulta para instalar a prótese definitiva, meses depois, Cindy e Eusébio não tivessem dado com a cara na porta. Doutor Barbosa, em meio a um imbróglio com o sócio, o também dentista Ted Levi, deixou o consultório com sua equipe sem dar notícias, nem deixar as informações necessárias para que seus pacientes pudessem continuar o tratamento com outro profissional. Sem conhecer o selo dos implantes - que permite identificar o tipo de material usado - ou os componentes para o manuseio das próteses, muitos dentistas hesitam em intervir. "É como se estivéssemos reféns", compara Cindy.

Nos últimos meses, Eusébio começou a sofrer com sua prótese provisória. "Ela está partida, rachada no meio. Eu tenho muita dificuldade para comer", conta o português, que também se exprime com dificuldade, temendo que os implantes se rompam totalmente a qualquer movimento mais brusco.

Fiquei sem dinheiro e sem dentes."

"Como acreditei muito nesse senhor, continuei pagando. Só me faltam 500 euros, da última prestação, que não paguei", resume o português, que fez um empréstimo para honrar sua dívida.

Dezenas de casos

A história de Eusébio não é a única. "Estou reunindo os dados de pelos menos 15 vítimas", contou à RFI a advogada Sarah Saldmann, conhecida por suas aparições na televisão francesa e por defender processos com grande visibilidade na mídia. "Mas no total já sabemos de cerca de 80 pacientes", contabiliza. Quase todos atraídos pelos preços oferecidos para as próteses dentárias.

Os clientes denunciam o desaparecimento do dentista Francisco Barbosa, as pressões financeiras que sofreram da parte de alguns funcionários para efetuarem pagamentos à vista e em dinheiro, mas também as práticas do cirurgião que, segundo eles, banalizava a extração total dos dentes em seus diagnósticos. "Quando ele viu meu marido, parecia que estava recitando uma poesia. Ao ouvi-lo, [retirar todos os dentes] parecia muito simples", se lembra Cindy.

Outra advogada, Chloé Méléard, também acompanha alguns casos. "Nossos clientes estão sofrendo. Eles esperam muito das autoridades para esclarecer essa situação. A recuperação dos dados médicos é perfeitamente legítima para que um paciente tenha o direito de ter acesso a todas as informações médicas sobre ele. Isso é o que estamos tentando obter atualmente", disse à rádio FranceInfo, que fez uma longa reportagem sobre as denúncias.

Esse é o caso de Aïcha Ben Tayeb, que fez implantes dos dentes superiores em março de 2022, após uma primeira consulta com Francisco Barbosa. Como Eusébio e Cindy, a francesa se encontrou com o dentista português apenas uma vez, quando ele fez um orçamento de 16 mil euros (mais de R$ 84 mil). "Minha cirurgia durou 7 horas e foi feita com anestesia local por outro dentista, [um brasileiro] que não falava francês. Uma assistente tinha que traduzir tudo que eu dizia", relata. "Sai de lá com uma prótese provisória e todos as consultas pós-operatórias foram feitas com profissionais diferentes, sempre dentistas que falavam apenas português", disse, em entrevista à RFI.

Mas com o tempo, a prótese de Aicha começou incomodá-la. "Entrei em contato várias vezes para marcar consulta, mas a data era sempre adiada. Na última ligação, a secretária marcou um horário no final de março [de 2022]. Mas quando cheguei lá, a clínica estava fechada", conta a francesa, que já tinha pago metade do tratamento.

No entanto, seu problema não é financeiro: "Tenho muita dor. Não consigo nem dormir. O meu medo maior é que o aparelho quebre totalmente. E não posso continuar o tratamento com outro profissional, pois preciso da tal chave e dos selos dos implantes. Alguns dentistas me disseram que esse tipo de material não é usado na França. É como se eu estivesse trancada, prisioneira, pois não posso me tratar e também não posso recuperar meus prontuários na clínica, já que o sócio do doutor Barbosa diz que não sabe onde estão esses documentos". A reportagem contactou o dentista Ted Levi, mas não obteve nenhuma resposta.

Eu não sou paciente do doutor Francisco Barbosa, sou uma vítima dele."

"Eu confiei nele. Afinal, seu consultório era na rue de Rivoli. Que tipo de médico tem condições de se instalar nessa região da cidade? Só os melhores. Não é como se estivéssemos em Barbès", compara, em alusão a um dos bairros populares de Paris.

Suspeita de fraude

O caso, que ganhou destaque em jornais franceses, também chama a atenção pelos aspectos financeiros e a suspeita de fraude no sistema de seguridade social. "Não sei que tramoia eles fizeram", lança Thierry Samdja, outro paciente que passou pelo consultório da rue de Rivoli. Como os demais, o francês também confiou no endereço comercial de prestígio e foi atraído por um anúncio na internet. "Me apresentaram um orçamento de 18 mil euros (cerca de R$ 94 mil), disseram que uma parte seria reembolsada, pois meu convênio médico era muito bom, e que no final o tratamento iria me custar 5 mil (cerca de R$ 26 mil). No total, desembolsei 9.680 euros (cerca d R$ 50 mil), dos quais 3 mil (R$ 15 mil) foram pagos em dinheiro e 2 mil euros (R$ 10 mil) com cartão de crédito, antes da primeira intervenção", detalhou, em entrevista à RFI.

Mas Thierry nem teve tempo de ser operado. "Fizeram apenas uma limpeza, marcaram a consulta para a cirurgia 17 de março [de 2022] e depois adiaram para 31 de março. No dia 30 de março, recebi uma mensagem avisando que a clínica estava fechada. Foi um balde d'água fria", conta. "Claro que não estou na mesma situação daqueles que tiveram problemas com seus implantes. É melhor perder 10 mil euros do que a boca inteira. Mesmo assim, temos que parar essa carnificina. Ninguém pode fazer isso com a saúde das pessoas. É inadmissível. Estamos na França, um país desenvolvido. Isso não deveria acontecer em lugar nenhum", esbraveja. "Entrei em contato com Ordem Nacional dos Cirurgiões Dentistas (ONCD) e até agora não fizeram nada", confia.

"Eu também escrevi para a ONCD para que me ajudem a recuperar meu prontuário, mas não tive nenhuma resposta", completa Aïcha. "Nos sentimos abandonados. Para mim, todos são culpados: doutor Barbosa, sua equipe, mas também a Ordem dos Cirurgiões Dentistas, que não fiscalizou."

Questionada pela rádio France Info, a ONCD confirmou ter sido informada sobre o caso. "Mas ainda não conhecemos todos os elementos", explicou Geneviève Wagner, representante da Ordem. No entanto, ela comentou a banalização da extração total dos dentes, assim como o uso de técnicas complexas por profissionais estrangeiros. Segundo os pacientes, os dentistas, quase todos brasileiros, não estariam registrados na entidade e atendiam usando o registro de Francisco Barbosa.

"Todos os dentistas estrangeiros que intervenham [em território francês] são obrigatoriamente autorizados a exercer pela ONCD. Além disso, a técnica do 'All on Four' [que consiste em colocar umaprótese dentária fixada por apenas quatro implantes, em pontos estratégicos da boca, e que foi aplicada em quase todos os pacientes na rue de Rivoli] é praticada na França apenas por dentistas treinados e especializados, com equipamentos aprovados. (...) O dentista deve prolongar a vida dos dentes do paciente. Não é para arrancar todos os dentes que ainda são viáveis para colocar próteses e implantes", disse.

A reportagem da RFI entrou em contato com a ONCD para ter detalhes sobre as possíveis sanções caso irregularidades sejam comprovadas, mas não obteve nenhuma resposta.

Swiss Dental : um grupo já contestado em Portugal

O caso também chamou a atenção para a empresa Swiss Dental Services, que veiculou as publicidades que levaram os pacientes da França até o consultório de Francisco Barbosa. Com sede no Porto e dirigida por um brasileiro, o grupo já foi processado em Portugal por falta de pagamento de funcionários e é acusado de empregar dentistas que não fazem parte da Ordem de cirurgiões dentistas do país.

Segundo reportagens da imprensa portuguesa, a Swiss Dental traria para a Europa jovens cirurgiões, principalmente brasileiros, para exercer de forma irregular. A empresa, que é dirigida por um brasileiro, foi alvo em março deste ano de uma denúncia da Ordem dos Médicos Dentistas de Portugal, acusada de prática de exercício ilegal junto à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS).

A filial da Swiss Dental Services na França está domiciliada em Paris, na rue de Rivoli, no mesmo prédio onde atuava Francisco Barbosa. O único número de contato, um celular, está fora do ar. Os telefones da Swiss Dental Services em Portugal indicados em seu site também deixaram de funcionar.

No entanto, o doutor Barbosa não desapareceu totalmente. Um de seus pacientes descobriu recentemente, pesquisando na internet, que o dentista estava exercendo em uma clínica em outro bairro de Paris. "Marquei uma consulta e fui até lá", conta Cindy.

"Quando eu disse que era a mulher de Eusébio, que meu marido não podia mais se alimentar corretamente, que ele ficou com 9 mil euros (R$ 47 mil) e queria explicações, ele respondeu que tinha sido expulso do consultório da rue de Rivoli pelo sócio e que estava falido. No dia seguinte, seu nome desapareceu do repertório e a clínica me avisou que ele havia pedido demissão", conta Cindy.

"Eu espero, muito sinceramente, que alguém nos ouça e nos ajude", desabafa Eusébio. "Eu gostaria apenas de voltar a ter o meu sorriso e comer normalmente".