Lula em Assunção: pragmatismo deve prevalecer sobre ideologia nas relações entre Brasil e Paraguai
O presidente Lula participa hoje da posse do presidente eleito do Paraguai, Santiago Peña, num momento de certa tensão na América do Sul, com campanha eleitoral violenta no Equador e chances de vitória da extrema direita na Argentina. Com os paraguaios, principal desafio é a renovação do tratado de Itaipu
Raquel Miura, de Brasília
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O país é governado há sete décadas por um único partido, o Colorado, de direita, sigla de Santiago Peña, que assume o poder nesta terça-feira (15). A única exceção foi a gestão de Fernando Lugo, de esquerda, deposto sumariamente em 2012. Mesmo assim, Lula chegou ao Paraguai para a cerimônia de posse pisando em solo mais amigo que inimigo, não só porque o Brasil é o principal parceiro comercial do Paraguai, mas principalmente se levar em conta a atual situação política de outros vizinhos.
O conservador Peña já elogiou publicamente Lula e deu mostras de que pretende ter com o Brasil relações cordiais e pragmáticas. "É interessante observar o que vem desde as eleições paraguaias. Peña é o sucessor do Mario Abdo. Mas enquanto Mario Abdo era muito mais pró-Bolsonaro, Peña já ganhou as eleições fazendo um aceno a Lula. Isso não significa uma guinada à esquerda, mas que fará um governo objetivo, prático. E ele precisa ter uma boa relação com Lula", disse à RFI Arthur Murta, professor de Relações Internacionais da PUC/SP.
O ambiente diplomático é importante para o Paraguai porque o principal assunto na mesa de discussão entre os dois países é a atualização do tratado de Itaipu, prevista para este ano, com peso muito relevante para a economia guarani. A energia produzida pela binacional é dividida igualmente entre os dois países, mas como o Paraguai usa apenas 15% da carga gerada, vende parte de sua cota para o Brasil. Em 2009, os presidentes da época, Lula e Lugo, elevaram em três vezes o valor transferido aos paraguaios, mas a reivindicação hoje vai além da elevação de tarifas, com foco em cláusulas que impedem o Paraguai de vender a energia a outros países ou diretamente no mercado brasileiro.
"Brasil e Paraguai têm vários temas como a questão da violência, da segurança fronteiriça, a questão dos brasiguaios, os brasileiros que são donos de terras no Paraguai, as cidades germinadas. Enfim, são muitas questões que Brasil e Paraguai têm juntos, mas o desafio deste ano de 2023 na relação bilateral realmente gira em torno da renegociação do tratado de Itaipu, discussão que está acontecendo agora", frisou Murta.
Outro analista, Vinícius Rodrigues Vieira, professor da Faap e da FGV, afirmou à RFI que o Paraguai irá pressionar pela revisão do acordo de Itapiu, mas que isso nem de longe é a maior preocupação do Brasil na América do Sul. "O Paraguai, independentemente do presidente, tem se tornado nos últimos anos mais assertivo na sua relação com o Brasil. Portanto, pode se esperar de Santiago Peña uma relação de respeito, porém de intensas cobranças em temas como Itaipu, mas isso não se compara a posturas como as do presidente Lacalle Pou, do Uruguai, que simplesmente quer romper com o Mercosul. Assim, Santiago Peña tende a ser o presidente que menos problema pode causar a Lula no âmbito do bloco comercial".
A análise considera também as incertezas quanto às eleições na Argentina, depois que o ultradireitista Javier Milei venceu as prévias do fim de semana. "Na Argentina, há a chance de o poder ir rumo à direita. E em particular Javier Milei, ultradireitista, que não parece ter apreço a instituições democráticas porque fala em desmantelar o estado argentino, tende a ter uma postura de animosidade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deixando em atenção também empresários brasileiros que exportam para a Argentina", disse Vieira, lembrando que o primeiro turno da disputa ocorrerá em outubro.
Instabilidade regional
O Brasil é o maior país em extensão, população e PIB não só da América do Sul, mas da América Latina. Porém, isso não significa que Lula encontrará facilidade para se tornar uma liderança regional ou levar adiante o projeto de maior integração no subcontinente. O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Jorge Ramalho, disse à RFI que além da instabilidade política e da crise econômica na Argentina, situações tensas em outros países, como o Equador, dificultam os planos do petista.
"Hoje o ambiente internacional, o ambiente regional é muito mais complexo. Atualmente é muito mais difícil Lula conseguir um nível de consenso que se criou nos seus dois primeiros mandatos. Isso porque muita coisa aconteceu. Os países seguiram caminhos distintos, enfrentaram sucessões muito delicadas. Nós vemos o que aconteceu no Peru, o que está acontecendo no Equador, o que aconteceu no Chile", ressaltou Ramalho.
O analista da UnB também afirmou que há uma herança negativa de recentes governos no Brasil que geraram dúvidas sobre o caminho das relações exteriores do país no futuro, ainda que a vitória do atual presidente tenha sido bem recebida por seus colegas lá fora. "Não se trata de uma resistência a Lula, em particular. Mesmo que haja alguns presidentes na região com orientação à esquerda, voltada para a inclusão social, promoção do desenvolvimento sustentável, o ambiente se tornou mais complexo, mais difícil, reduzindo as margens de negociações dos chefes de Estado".
Adversários dizem que Lula tem viajado muito ao exterior, gerando gastos e tentando esvaziar crises internas. Os analistas destacam que é preciso refazer pontes na diplomacia e olhar essa área como importante para a economia e a geopolítica mundial. "Acho que Lula está correto em viajar, porque o Brasil tem um passado, desde Rio Branco, desde o início do século XX, de se aproximar, cooperar, compreender os interesses dos outros estados, uma postura multilateral aberta sempre. Acho que o Brasil deve buscar sempre o relacionamento com China, Rússia, Europa, Estados Unidos, aprofundar esse relacionamento com a América do Sul. É preciso também olhar para a África, um continente fundamental", avaliou à RFI José Niemeyer, coordenador da Graduação em Relações Internacionais do Ibmec/RJ.
Niemeyer, no entanto, ressalta que é preciso trazer resultados concretos e atuar com um corpo diplomático que tenha gente e também estrutura nos países considerados chave para a diplomacia e os negócios brasileiros. "Não acho que tais viagens visem tirar a atenção de problemas internos, até porque a economia, por exemplo, está minimamente nos trilhos hoje. E o governo entende a importância das relações entre países. Agora, é preciso trazer algo mais concreto para o plano da política externa, resultados mais efetivos, por exemplo, o acordo Mercosul-União Europeia".