Estudantes brasileiros na Argentina preocupados diante da possibilidade de perder ensino gratuito
Milhares de estudantes brasileiros na Argentina temem que a falta de orçamento para as universidades públicas implique que os estrangeiros tenham de começar a pagar pelo ensino, atualmente gratuito. Na próxima semana, o governo do presidente Javier Milei deve habilitar as universidades a cobrarem dos estudantes estrangeiros. Na mira, os custos da carreira de Medicina, justamente onde os brasileiros são maioria entre os estrangeiros.
Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
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Na quarta-feira passada (2), cerca de 270 mil pessoas, na sua maioria estudantes e professores, manifestaram-se em frente ao Congresso argentino contra o corte do presidente Javier Milei no orçamento das universidades públicas.
Foi a segunda grande manifestação do ano. Em 23 de abril, 430 mil participaram da manifestação universitária a favor da educação gratuita e de qualidade.
Por todo o país, a maré humana se multiplicou. O objetivo principal dos manifestantes é pressionar os legisladores a não aceitarem o veto que o presidente Javier Milei aplicou na lei que financia as universidades públicas e que corrige os salários dos professores.
Os protestos foram os maiores contra o governo Milei até agora. Nesses protestos, participam milhares de brasileiros. Na Argentina, há cerca de quatorze mil estudantes universitários brasileiros. São maioria entre os estrangeiros e quase todos estudam Medicina.
Legião brasileira na Universidade de Buenos Aires
Gabriel Moraes de Souza, de 25 anos, é de São Paulo. Está no último ano de Medicina na prestigiosa Universidade de Buenos Aires. Gabriel teme que na disputa entre o governo e os universitários, a conta sobre para os brasileiros.
"O meu temor aqui hoje em dia, na situação que a gente está vivendo na Argentina, não só os argentinos, mas todos os estudantes estrangeiros que vêm para cá, principalmente os brasileiros, que são a grande maioria, é que o financiamento da universidade pública e do ensino público de toda a Argentina entre em jogo, fazendo com que a gente perca boa parte desse financiamento, parcial ou total. E isso é o que a gente mais está temendo hoje em dia", explica Gabriel à RFI.
Tífani Fernández Mareco, de 25 anos, vem de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Está no primeiro ano de Medicina e descreve o medo dos brasileiros que estão começando os estudos.
"O meu maior medo é que ocorra o fechamento das universidades e que eu não consiga estudar, não consiga terminar o meu curso, minha faculdade. O principal medo que a gente tem é que a faculdade não seja mais gratuita e que a gente não possa pagar", conta Tífani.
Quase metade dos estudantes brasileiros na Argentina fazem o curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires, uma das mais prestigiosas do mundo e líder na região no ensino gratuito e de qualidade.
Os brasileiros são atraídos porque não precisam prestar o vestibular, porque conseguem documento argentino provisório poucas semanas depois de entrarem no país e porque, para se manterem na Argentina, gastam por mês menos do que a mensalidade de uma universidade privada no Brasil.
Governo argentino mira estudantes estrangeiros
O governo Milei quer que as universidades deixem de financiar gratuitamente a formação de estrangeiros. Na próxima semana, o governo deve habilitar as universidades públicas a cobrarem pelo ensino aos que chegam ao país para estudar. Devido à autonomia das instituições de ensino, a decisão deverá ficar para cada universidade.
Tífani teme que essa medida acabe com a sua carreira antes mesmo da formatura.
"Ao longo dos meus próximos anos, se eu tiver que pagar a faculdade, eu acho que eu deixaria de estudar porque eu não teria condições de pagar a universidade privada. Foi por isso que eu vim para Buenos Aires também: porque é uma faculdade gratuita para estrangeiros", desabafa Tífani durante a entrevista com a RFI.
Embate com o Congresso
A educação universitária gratuita e de qualidade é um orgulho da Argentina, base sobre a qual se ergue todo o tecido social do país.
O Congresso aprovou uma lei que estabelece o financiamento universitário e amplia o orçamento de 2025. A lei reajusta de forma bimestral o orçamento das universidades e os salários dos professores.
Na quinta-feira (3), após a manifestação, o presidente Milei vetou a lei. Na próxima quarta-feira (9), a Câmara de Deputados vai debater se derruba o veto do presidente.
Atualmente, o orçamento das universidades está 35% abaixo da inflação e os salários dos professores, 50% inferiores.
A famosa "serra elétrica" de Milei tem passado também pelos salários públicos e pelas aposentadorias.
O impacto da lei no Produto Interno Bruto do país é de apenas 0,14%, mas o presidente considera que atenta contra o equilíbrio fiscal.
Em vez da lei, o governo ofereceu um reajuste de 6,8% nos salários, em linha com os demais salários do Estado. Os professores recusaram.
Para o governo, os opositores aproveitam a bandeira nobre da educação pública para atingir o plano econômico.
O porta-voz da Presidência, Manuel Adorni, avisou que se os legisladores quiserem aumentar o financiamento às universidades e aos professores, devem dizer de onde vão tirar o dinheiro.
"O governo não é contra a reivindicação. Somos contra que o Congresso aprove leis que não possuam verba designada no orçamento. Ou seja: leis que basicamente não podem ser financiadas", argumentou Adorni.
Futuro sob risco
A estudante brasileira Ludmila Pereira, de 33 anos, está preocupada com o futuro da Educação pública na Argentina.
"Eu moro há 10 anos na Argentina. Eu vim para cá por causa da Educação pública e gratuita. Eu acredito, sim, que está em risco a Educação pública, devido ao corte no orçamento feito pelo governo. Eu tenho medo de que a Educação não seja mais pública na Argentina", adverte.
Ludmila vem de Cuiabá e está prestes a se formar. Mesmo assim, teme pelos estudantes brasileiros que querem começar os estudos por aqui.
"Eu estou com medo. Estou terminando o curso. Poderia dizer que não estou nem aí, mas não é isso o que eu sinto. Eu amo este país. A gente ama este país. A gente quer que continue a faculdade, a educação gratuita. Se pararmos para pensar, eu não serei a mais prejudicada, mas tem muitos que virão ainda. Pode ser até gente da minha família", explica Ludmila à RFI.
Quando o dinheiro é limitado, sobra para os estrangeiros, geralmente vistos como aqueles que recebem de graça o que os contribuintes argentinos pagam. É nessa hora que os discursos xenófobos ganham projeção.
A estudante de Medicina Jordana Stival, de 25 anos, acha uma injustiça que os brasileiros sejam penalizados. A brasileira de Goiânia lembra que, nos seus 203 anos de história, a Universidade de Buenos Aires foi sempre gratuita.
"Eu acho que a possibilidade de que os brasileiros tenham de pagar para estudar na Argentina é altamente injusta porque se a faculdade é pública e gratuita, tem de ser pública e gratuita para todos, assim como vem sendo desde os primórdios da Universidade de Buenos Aires", indica Jordana à RFI.
Mas mesmo que o ensino continue gratuito para os argentinos, o risco de uma queda na qualidade pode ser uma consequência da política de déficit fiscal zero do governo Milei.
"Caso o orçamento não seja aumentado, acho que existe sim o risco de a qualidade da Universidade de Buenos Aires ser afetada já que os professores não vão querer participar da educação porque eles vão preferir ir para outro país, ganhando um salário melhor e vão deixar o tesouro da Argentina que é a qualidade da Educação para todos", acredita.
O porta-voz da Presidência argentina questiona que o ensino público seja gratuito para estrangeiros.
"O custo de um estrangeiro que estuda numa universidade pública argentina é pago por nós, por você, por mim, pelo aluno argentino que está ao lado do estrangeiro, querendo receber também outros serviços ou melhor qualidade educacional. São assuntos que devem ser atendidos, que devem ser debatidos", defende Manuel Adorni.
Mas o Congresso pode conter os cortes do governo. O veto do presidente Milei pode ser derrubado, aliviando as contas universitárias. A cobrança sobre os estrangeiros pode não ser aprovada pelos legisladores ou mesmo não ser aplicada pelas universidades.
A queda-de-braço entre o governo e a oposição vai definir o modelo de ensino na Argentina e a sorte dos estudantes brasileiros no país.