Candidata à presidência dos EUA democrata e armada: por que declarações de Harris não chocam eleitorado americano?
Questão delicada nos Estados Unidos, o porte de armas de fogo não estava no centro desta campanha eleitoral, monopolizada pela imigração, os direitos reprodutivos e a economia. No entanto, declarações recentes da vice-presidente e candidata democrata Kamala Harris trouxeram esse assunto de volta à tona. Em entrevista à RFI, especialistas analisaram o que é visto como uma mudança de estratégia.
Daniella Franco, da RFI
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Em menos de um mês, em aparições públicas, a líder democrata evocou a questão do porte de armas em três ocasiões. Na primeira, em 10 de setembro, durante o único debate desta campanha com o candidato republicano e ex-presidente Donald Trump, Harris revelou que ela e seu vice, Tim Walz, são proprietários de armas e negou que tenha o objetivo de revogar esse direito dos americanos.
Poucos dias depois, no programa de TV de Oprah Winfrey, Kamala surpreendeu a apresentadora ao afirmar que se alguém invadir sua casa "vai levar um tiro". "Provavelmente não deveria ter dito isso", afirmou a vice-presidente americana, antes de reiterar, aos risos: "minha equipe vai lidar com isso mais tarde".
A última declaração da líder democrata sobre a questão ocorreu na quarta-feira (8), ao programa 60 minutes do canal de TV CBS. Respondendo à pergunta do apresentador Bill Whitaker, Harris revelou que a arma que possui é uma pistola semiautomática Glock, utilizada pela vice-presidente "em um estande de tiro".
Tradicionalmente, o Partido Democrata é a favor do endurecimento da legislação sobre o porte de armas, em um país onde há 120 armas a cada 100 americanos, segundo a agência oficial de Estatísticas dos Estados Unidos. No entanto, o fato de reconhecer a posse de uma pistola não choca o eleitorado progressista, nem pode prejudicar a campanha de Harris, devido a uma característica histórica no país: a cultura do armamento.
500 milhões de armas por ano
A célebre Segunda Emenda à Constituição americana, aprovada em 1791, dá o direito à população de adquirir e manter armas em nome da legítima defesa. Além disso, o poderoso lobby das armas, liderado pela Associação Nacional do Rifle (NRA, sigla em inglês), coloca à venda quase 500 milhões de armas por ano nos Estados Unidos.
"Obviamente, quando Kamala afirma possuir uma arma, ela apenas está respondendo uma crítica de Trump, segundo quem ela poderia banir todas as armas. É uma estratégia para ela mostrar que defende a Segunda Emenda e que ela será dura sobre a criminalidade nos Estados Unidos", avalia o professor Sean Purdy, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo, especialista em História dos Estados Unidos.
A cientista política Daniela Melo, da Universidade de Boston, compartilha a mesma ideia. "Ser de esquerda e ter uma arma não é o que choca os americanos", avalia. "O porte de armas é algo muito comum nos Estados Unidos, e quando Kamala faz essas declarações, ela está apenas sinalizando que não vai iniciar uma guerra à Segunda Emenda, mas que vai tentar apenas atenuar as piores políticas sobre essa questão", reitera.
Segundo Purdy, o debate sobre o porte de armas é apenas a ponta do iceberg de um contexto muito grave, envolvendo violência, desigualdade social e racismo, além da controversa política externa dos governos. "Ao mesmo tempo em que se debate a regulamentação de armamentos, o governo Biden envia US$ 18 bilhões para o apoio militar de Israel", pontua.
Armas ficaram de fora da campanha
A campanha para o pleito de 5 de novembro vem sendo dominada, até o momento, por outras questões de forte interesse do eleitorado americano, como imigração, direitos reprodutivos das mulheres, inflação e política externa. Essa diminuição do interesse da população pelo debate sobre o porte de armas pode ser um indício de uma mudança na sociedade, avalia Purdy.
"As estatísticas mostram que, proporcionalmente, os americanos vêm adquirindo menos armas desde os anos 1970", indica. "No entanto, o que não mudou é a cultura de armas. Ainda vemos a sensacionalização da violência, a política externa é muito agressiva, então teremos que observar essa tendência a longo prazo", sublinha.
Já Daniela Melo observa que em algumas regiões do país, principalmente no Meio Oeste americano, a questão do porte de armas ainda é primordial. Por isso, nos chamados "Estados-pêndulos", sem inclinação partidária definida, a estratégia de Kamala de ratificar sua tolerância ao porte de armas para a defesa pessoal pode dar certo.
"Kamala pode ter chocado o mundo fora dos Estados Unidos, que viu uma candidata da esquerda falando abertamente e de forma tão descontraída sobre o seu próprio porte de armas. Mas, na verdade, ela falou como um americano médio. Eu não tenho visto nenhuma indicação que isso leva a uma perda de votos", conclui.