De Piaf a Aya Nakamura, como a 'chanson française' segue conquistando o mundo impulsionada pelos Jogos de Paris
As músicas em francês desfrutam de um sucesso sem precedentes em países não francófonos graças a artistas como Stromae, Aya Nakamura, Céline Dion e Edith Piaf. O que faz com que as pessoas que não falam o idioma queiram ouvi-las e o que esses intérpretes e suas canções dizem sobre a França e seu idioma? O novo Centro Internacional da Língua Francesa, nos arredores de Paris, faz essa pergunta intrigante em sua exposição de abertura.
As Olimpíadas de Paris não mostraram apenas proezas esportivas e monumentos, mas também deram grande visibilidade à "chanson française", expressão conhecida por catalogar uma lista heterogênea e multidiversa de canções em língua francesa, e que encontra suas origens na Idade Média e no período posterior, o Renascimento.
Céline Dion, sem dúvida, roubou a cerimônia de abertura do evento com uma interpretação monumental de L'Hymne à l'amour, de Edith Piaf, do alto da Torre Eiffel. Em 24 horas, as transmissões da música em todo o mundo aumentaram em mais de 300%.
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As plataformas de streaming online ajudaram a levar as músicas em francês a novos públicos, rompendo a barreira do idioma com traduções prontas. A estrela franco-malinesa Aya Nakamura, que também contribuiu com uma apresentação memorável na abertura dos Jogos Olímpicos, é agora a artista de língua francesa mais transmitida de todos os tempos.
Nakamura, Dion e Piaf, mas também Juliette Gréco, Françoise Hardy, Zaz e muitas outras artistas femininas ocupam o centro do palco na exposição "C'est une chanson qui nous ressemble" ("Uma canção que se assemelha a nós"), que analisa o sucesso das canções populares francófonas em todo o mundo.
O título foi extraído do clássico Les Feuilles mortes (Folhas mortas, em tradução livre), de Jacques Prévert e Joseph Kosma.
"Quando você diz 'je t'aime' e não é francês, isso significa algo mais, significa a Champs-Elysées, a Torre Eiffel, a Côte d'Azur, campos de lavanda...", diz o curador da exposição, Bertrand Dicale. "Essa é a história que queríamos contar - até que ponto a língua francesa, por meio da música, carrega consigo realidades, sonhos, ambições e ilusões."
"Maria Antonieta negra"
O jornalista musical Dicale é uma enciclopédia ambulante sobre a música francesa e quando, em julho de 2023, ele começou a pensar sobre quais artistas haviam causado mais impacto no exterior, percebeu que estes eram principalmente mulheres.
"Fiz uma lista inicial: Juliette Gréco, Aya Nakamura, Françoise Hardy, Edith Piaf e, é claro, o 'Everest da música francesa', Céline Dion, e depois Françoise Hardy, Mireille Matthieu, Zaz... Tive que chegar ao 11º ou 12º lugar para encontrar o primeiro homem, Charles Aznavour", relata.
Uma foto em tamanho real de Nakamura em um vestido de lamê dourado justo abre a exposição, juntamente com o vídeo do hit Pookie, encenada no castelo de Fontainebleau. "Nakamura fez sucesso em mais de 100 países ao redor do mundo", explica Dicale.
Mesmo assim, ela enfrentou uma enxurrada de racismo da extrema direita antes dos Jogos Olímpicos de Paris, depois que circularam rumores de que ela cantaria Piaf na cerimônia de abertura - como se ela fosse "indigna" de encarnar a música francesa. No final, ela não apenas se apresentou - ao lado da Guarda Republicana - como também redefiniu o significado de ser francês.
"A extrema direita e os conservadores a veem como uma imigrante, portanto negra... Mas vista de fora, ela é a França", insiste Dicale. "Ela é sexy, independente, personifica a liberdade, a beleza e o glamour. Ela é vista como uma espécie de Maria Antonieta negra."
Exotismo e agonia
Nakamura teria semelhanças com o ícone francês Juliette Gréco, que, segundo Dicale, também experimentou "amor e ódio" em sua própria época - os anos 1950.
Uma foto de Gréco cantando em Berlim mostra-a em um vestido longo, justo e preto. Embora ele cobrisse tudo, exceto as mãos e o rosto, seus contornos justos ao corpo não deixavam nada para a imaginação.
Dicale diz que as madeixas indomáveis e a atitude de mulher livre de Gréco, combinadas com sua capacidade de interpretar filósofos como Jean-Paul Sartre, indignaram a sociedade francesa conservadora da época. Havia um sentimento de "vergonha", observa ele, por ela estar representando a França no Rio ou em Berlim. E, no entanto, ela se tornou uma espécie de "exportação de luxo" - "ao mesmo tempo culta e escandalosa".
Embora tanto Nakamura quanto Gréco estejam envoltas em um certo erotismo, o termo não vem imediatamente à mente com outra grande artista francesa, Edith Piaf.
A exposição apresenta um recorte de imprensa de 1956 do The New York Times que se refere a Piaf como a suma sacerdotisa da agonia que "encharcou o Carnegie Hall de lágrimas na noite passada, e um grande público chafurdou nelas com um entusiasmo que provou que o desgosto faz o mundo inteiro chorar".
Por meio de canções como Les Amants d'un jour, sobre dois amantes que se suicidam juntos, Dicale diz que Piaf apresentou uma espécie de "teatro do sofrimento" - um gênero que não é comum nos EUA, onde as baladas tendem a ser mais suaves.
Política
Embora o amor tenha grande destaque, os ouvintes não francófonos também são atraídos pelas canções em francês por sua mensagem de liberdade e resistência. "A música mais popular e mais gravada em francês em todo o mundo não é La Vie en rose, mas La Marseillaise" [o hino francês], diz Dicale.
Gravada em centenas de idiomas, "é uma canção de revolução, a revolução do povo, um símbolo de revolta do povo", observa ele. "Mas também é uma canção de contradições, cantada tanto por aqueles que pegaram em armas contra o exército francês quanto por membros do exército que estavam atacando os manifestantes."
A maioria das gravações foi feita com vozes masculinas. Esse também é o caso de L'Internationale - a canção da revolta comunista, composta em 1888 - e Le Boudin, o hino da Legião Estrangeira Francesa.
"São canções masculinas e de protesto", diz Dicale. "A política geralmente é conduzida por uma voz masculina, mesmo que [a famosa pintura de Eugène Delacroix] La liberté guidant le peuple seja encarnada por uma mulher", sugere.
Le Déserteur (O Desertor), outro sucesso de língua francesa no exterior, contraria um pouco essa tendência. Escrita por Boris Vian, ficou famosa nos Estados Unidos por Peter, Paul and Mary. "Eles a gravaram em francês no início da Guerra do Vietnã e ela continua sendo uma das canções pacifistas mais famosas do mundo", observa Dicale.
A exposição apresenta uma versão em russo gravada no ano passado pela artista ucraniana radicada na França, Diane Nelson, com o objetivo de incentivar os soldados russos na Ucrânia a desertar.
Oh, Champs-Elysées!
Das 2.800 canções escritas sobre Paris, uma das mais emblemáticas é o sucesso de Joe Dassin, Champs-Elysées, de 1969. A música celebra a avenida onde você pode encontrar "tudo o que quiser", principalmente romance. Mas suas origens não são francesas.
Ela foi adaptada da música britânica Waterloo Road, de 1968, da obscura banda de rock Jason Crest, que celebrava uma rua em Londres onde você poderia encontrar um "cara feliz tocando cakewalks em seu violão".
O original foi um fracasso. Mas o letrista francês Pierre Delanoë ouviu a melodia, gostou dela e deu um toque mais romântico, transferindo-a para uma avenida onde dois estranhos se tornam amantes "deslumbrados pela longa noite".
A Champs-Elysées é agora uma avenida francesa um pouco sem alma e com preços excessivos, o que levou as associações locais a fazer uma campanha para ajudar os parisienses a se apaixonarem novamente por ela. Mas, fiel à tradição, a canção permitiu que o sonho continuasse vivo, muito depois de a realidade ter tomado conta dele.
A exposição "C'est une chanson qui nous ressemble" fica em cartaz na Cité Internationale de la langue française, no Chateau Villers-Cotterets, até 5 de janeiro de 2024.