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"Não sou um herói": dez anos depois, sobrevivente dos atentados de Paris relembra como ajudou a salvar reféns

09/01/2025 15h46

Há dez anos, em 9 de janeiro de 2015, dois dias após o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, quatro pessoas foram mortas por um terrorista no Hypercacher, um mercado frequentado pela comunidade judaica, na Porte de Vincennes, no leste de Paris. Um funcionário do estabelecimento, Lassana Bathily, um malinês muçulmano, ajudou a salvar vários reféns. Uma década depois, ele se lembra de cada detalhe, diz que não se vê como um herói e afirma ser "apenas um bom cidadão".

Arnaud Pontus, da RFI em Paris

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RFI: Dez anos depois, você se lembra o que aconteceu em 9 de janeiro de 2015 ?

Lassana Bathily: Eu me lembro até hoje de tudo o que aconteceu naquele dia. Essa lembrança segue comigo dez anos depois. É como uma cicatriz que fica, impossível de esquecer. Você simplesmente não consegue.

RFI: Naquele 9 de janeiro, quando a França ainda estava se recuperando do ataque ao Charlie Hebdo, perpetrados dois dias antes, um homem fortemente armado, Amedy Coulibaly, invadiu o Hypercacher, uma loja de conveniência kosher. Ele fez dezessete pessoas reféns e matou três imediatamente. Você era funcionário dessa loja e estava no porão, estocando caixas, quando ele entrou. O que passou pela sua cabeça nessa hora?

L.B.: Não imaginei que estivesse acontecendo algo dentro da loja. Pensei que fosse um acidente [do lado de fora]. Só mais tarde, quando o tiroteio se repetiu, várias vezes, vi todos os clientes descendo para se juntar a mim. Foi então que comecei a perceber que algo estava realmente acontecendo na loja. Foi um choque. Naquele momento, havia mais de vinte pessoas tentando se esconder no porão.

RFI: É nessa hora que você teve a ideia de esconder as pessoas na câmara fria?

L.B.: Naquele momento, a porta da câmara fria estava aberta. Todos nós entramos e eu segurei a porta para nos proteger.

RFI: Depois de alguns minutos, você sugeriu aos clientes que estavam lá que pegassem o elevador de mercadorias para tentar fugir da loja.

L.B.: Foi. Mas eles não queriam.

Alguns diziam que eu iria colocá-los em perigo. Então eu disse que nossas vidas já estavam em perigo e que tínhamos de tentar alguma coisa.

No final, eles não quiseram me seguir. Então, desliguei os motores [da câmara frigorífica] e pedi a todos que colocassem seus telefones no modo silencioso. E foi então que decidi pegar o elevador de carga.

RFI: O que te levou a tentar sair naquele momento?

L.B.: Eu conhecia bem a loja, então achei que tinha que tentar algo, apesar de os terroristas estarem armados e nós estarmos desarmados.

RFI: Mas quando você saiu, a polícia prendeu você imediatamente. Eles acreditaram, por um bom tempo, por uma hora e meia, que você era um dos terroristas.

L.B.: Sim, levou muito tempo para fazer a polícia entender, porque eles não tinham nenhuma informação sobre mim. Quando saí, corri em direção a eles. Eles pensaram que eu tinha explosivos comigo e levaram muito tempo para me identificar. Tenho que dizer que fui bastante maltratado no início, porque me pegaram como se eu fosse um terrorista...

RFI: Eles pensavam que você era um cúmplice de Amedy Coulibaly?

L.B.: Exatamente. Eu fui revistado durante uma hora e meia, até me identificarem.

RFI: Você disse a eles que trabalhava na loja e mostrou um mapa do local. Foi isso que permitiu aos policiais dos serviços especiais organizarem o ataque e entrarem na loja?

L.B.: Quando descobriram que eu não era terrorista, pediram que os ajudasse a desenhar um mapa da loja [...] Eles também conversaram com um dos clientes para perguntar onde eles estavam localizados.

RFI: E nesse momento você foi visto quase como um herói já que, com esse mapa, você ajudou a polícia a intervir. Mas você insiste que não se considera um herói. Por quê?

L.B.: Eu não sou um herói. Sou apenas um cidadão bom e simples que reagiu no momento certo. É isso, apenas um bom cidadão.

RFI: Mesmo assim, você acaba se tornando um herói nacional naquele dia. Como você viveu esses momentos?

L.B.: Depois dos ataques foi muito difícil, porque dei minha primeira entrevista no dia dos ataques, por volta das 3h ou 2h da manhã... E no dia seguinte, vi meu rosto em todos os lugares, na televisão, nos jornais. Todos estavam falando de mim. As pessoas também começaram a me criticar por eu ter mostrado o rosto, dizendo que não deveria ter me exposto. Mas eu apenas contei a eles o que vivi na loja, não inventei nada. É verdade que foi difícil, eu não estava preparado para algo daquele jeito, tão repentino.

RFI: Você foi apresentado como um muçulmano de Mali que salvou os judeus franceses. É um símbolo reconfortante em uma França traumatizada por ataques terroristas, não é mesmo?

L.B.: O fato de ser um muçulmano que trabalha com judeus, que salvou judeus, tornou-se algo forte e simbólico. Ninguém esperava isso. Mas eu sempre disse que os judeus são meus irmãos. Trabalhei com eles durante anos. Não tínhamos nenhum problema religioso. Eu até praticava minha religião na loja. Fazia minhas orações e o Ramadã [o jejum sagrado muçulmano].

Digo que salvei seres humanos, salvei seres humanos... sejam eles judeus, ateus ou de outras crenças. Somos todos seres humanos. Temos que ajudar uns aos outros quando precisarmos.

RFI: Mas o turbilhão continua, pois onze dias após os ataques, você foi naturalizado cidadão francês por seu ato de bravura, em uma cerimônia com os ministros da época.

L.B.: Foi o agradecimento da República pelo que eu fiz no Hypercacher naquele dia. E eu agradeço até hoje o governo da época, de François Hollande.

RFI: E é durante essa cerimônia de naturalização, em 20 de janeiro de 2015, que você declara: "Viva a liberdade, viva a amizade, viva a solidariedade, viva a França!".

L.B.: Todos nós temos que nos unir em momentos como esse e ter orgulho, especialmente orgulho de ser francês. Como sempre disse, eu me sentia francês mesmo antes de receber meu passaporte francês.

RFI: Depois disso você conseguiu retomar uma vida normal?

L.B.: Tenho uma vida normal. É verdade que as lembranças permanecem, mas, mesmo assim trabalho, pratico esportes. Agora sou empregado da prefeitura de Paris. Uma vida realmente normal.

RFI: Quando você vai ao Mali visitar sua família, as pessoas falam com você sobre esse dia 9 de janeiro de 2015?

L.B.: No começo, me falavam muito sobre isso... Mas quando vou para lá, estou de férias, para curtir a família e os amigos. Talvez as pessoas dos vilarejos vizinhos fiquem impressionadas quando me veem [...] Mas no meu vilarejo, já viramos a página. Não ouço falar muito sobre isso [...] Lá sou apenas o Lassana. O mesmo de sempre.

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