Ataques 'ideológicos' tentam impedir acesso ao aborto na França, 50 anos depois da descriminalização

Exatamente 50 anos após a promulgação da famosa Lei Veil, que descriminalizou o aborto na França, e quase um ano depois que o mesmo foi inscrito como direito na Constituição por Emmanuel Macron, o assunto continua criando polêmica e sendo instrumentalizado ideologicamente pela extrema direita, segundo a imprensa francesa. Sites hackeados, instalações vandalizadas, vitrines pichadas e consultas bloqueadas... Os centros de saúde que oferecem abortos são regularmente alvo desses atos na França.

Nesta sexta-feira, 17 de janeiro, completam-se exatamente 50 anos que uma mulher francesa, sobrevivente do campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau, se tornou célebre por outra proeza: defender o projeto de lei que descriminalizava o aborto - e conquistar sua aprovação, numa Assembleia (o Congresso francês) inteiramente dominado por deputados homens. Em 1975, apenas algumas mulheres haviam sido eleitas para a Assembleia Nacional, mas em número extremamente reduzido: dos 490 deputados, apenas 9 eram mulheres (ou seja, cerca de 1,8% das cadeiras do parlamento).

Ela se chamava Simone Veil, era ministra da Saúde na época e seu intenso combate humanista lhe valeu, em 2018, por iniciativa do presidente Emmanuel Macron, a entrada oficial no Panteão francês, monumento parisiense que abriga os túmulos de personalidades que deixaram sua marca na história da França por meio de suas contribuições políticas, científicas, literárias, artísticas ou militares.

Formada em direito e ciências políticas, ingressou no serviço público e foi nomeada Ministra da Saúde em 1974, sob a presidência de Valéry Giscard d'Estaing e o governo do então primeiro-ministro Jacques Chirac. Sua nomeação marcou um ponto de virada: Simone Veil tornou-se uma das primeiras mulheres a ocupar um cargo importante em um governo predominantemente masculino. Sua conquista de 1975 foi finalmente "selada" e inscrita na Constituição francesa como um direito fundamental das mulheres, num grande ato simbólico, que mobilizou centenas de milhares na França, e em todo planeta.

A Lei Veil de 1975 é muito mais do que uma peça legislativa: é um marco na história dos direitos das mulheres na França e um testemunho da coragem de Simone Veil diante da adversidade. Ao abordar um assunto tabu em uma França dividida, ela lançou as bases para um progresso irreversível, tornando-a uma figura importante do século 20, no país e no mundo. No entanto, em pleno 2025, ações de vândalos e manifestantes pró-Católicos ou da extrema direita tentam colocar em xeque o acesso universal - e agora garantido por lei - ao aborto na França. 

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Ataques sucessivos, agendamentos falsos, técnicas variadas

O primeiro ataque aconteceu ainda em março de 2024, alguns dias antes da inscrição do aborto como direito fundamental na Constituição francesa. Na cidade histórica de Rouen, no norte do país, o centro de aborto Simone Veil teve que apresentar uma queixa à polícia após vários atos violentos de ativistas antiaborto. Desde que foi inaugurado, há três anos, esse centro de aborto já vinha sendo regularmente alvo de ações de pequenos grupos ideológicos, de acordo com o portal France Inter

Uma das técnicas preferidas desses grupos são os chamados "agendamentos falsos" de consultas, no site oficial dedicado ao assunto na França, o Doctolib, ou diretamente sobre o site oficial dos centros de saúde dedicados, para interromper o funcionamento do instituto, declarou sua diretora, Marianne Lainé, ao site de France Info. "Para bloquear várias vagas, os ativistas antiaborto não hesitam em usar nomes e números de telefone diferentes", observou ela.

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Bullying, pichações, ofensas, o "vale tudo" dos "pró-vida"

Em meados de fevereiro de 2024, o site do centro foi hackeado. "Quando os pacientes digitam 'ivg-rouen.fr', eles recebem pornografia", explicou Lainé. O site ainda não estava acessível na segunda-feira, 4 de março. A fundadora do instituto médico Simone-Veil ressaltou, na ocasião, que esses atos maliciosos são pontuados por eventos da atualidade. Por exemplo, a frente do centro foi pichada com spray em setembro, antes da visita da então ex-primeira-ministra Elisabeth Borne. "Uma frase atroz: 'Borne, sua mãe deveria ter feito um aborto'", denunciou Marianne Lainé à imprensa francesa, indignada.

Impedir o aborto é crime na França, mas "a queixa apresentada em 2024 não deu em nada", lamentou Lainé nesta quinta-feira (16) ao site de France Inter. As agências governamentais dedicadas ao tema e suas filiais departamentais foram submetidas a uma onda semelhante de atos maliciosos quando o aborto foi consagrado na Constituição: fechaduras foram quebradas, instalações vandalizadas e vitrines pichadas, como em Lille, no norte da França.

Como explicou Véronique Séhier, administradora do centro de planejamento familiar da região norte do país: "Certa manhã, quando chegamos, encontramos as palavras 'Stop IVG' e 'IVG igual a assassinato' na janela do centro de planejamento familiar, bem como no chão. E elas estavam por toda a cidade. Era 8 de março de 2024, o dia em que o aborto foi consagrado na Constituição", lembra. A sigla IVG significa interrupção voluntária da "grossesse", ou gravidez, em francês.

Bonecas "ensanguentadas"

"Aborto = assassinato... Em 9 de março de 2024, o centro de Planejamento Familiar em Lille encontrou uma série de pichações contra o aborto em sua fachada. Essas inscrições, que denunciavam o aborto como assassinato, foram feitas em paralelo à cerimônia presidida pelo presidente Emmanuel Macron, durante a qual o aborto foi consagrado na Constituição francesa", reportou o Le Figaro à época.

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Também na região de Vendée, no oeste francês, às margens do Atlântico, a cidade de La Roche-sur-Yon foi palco de uma exibição macabra, com bonecas ensanguentadas colocadas aos pés do busto da ex-ministra Simone Veil, que introduziu a lei sobre o aborto. "O lago ao lado também foi colorido de vermelho e uma placa de papelão foi colada com o slogan 'A constituição mata nossos filhos', reportou Le Monde na ocasião.

Profissionalização e financiamento de manifestantes antiaborto 

Ativista feminista de longa data e ex-membro do Alto Conselho para a Igualdade entre Mulheres e Homens, Séhier presenciou a progressão das práticas daqueles que se opõem ao aborto. "Antes, as pessoas costumavam se manifestar do lado de fora das clínicas de aborto ou dos centros onde os abortos eram realizados. Houve até um período em que elas se acorrentavam às mesas de aborto. Depois, eles se tornaram mais profissionais, com financiamento substancial do exterior. Esses movimentos estão se tornando mais profissionais e estão particularmente presentes online e nas redes sociais", denunciou.

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O acesso à informação sobre o direito de abortar: uma nova batalha

Além dos ataques físicos, há outra batalha sendo travada na França, a da informação sobre o direito ao aborto. Hoje, nos mecanismos de busca, o site oficial do Ministério da Saúde ivg.gouv.net aparece em uma boa posição, reporta a imprensa francesa. Mas nas redes sociais, a situação é mais complicada: no Instagram, por exemplo, quando se digita a palavra-chave "aborto", rapidamente o usuário se depara com contas administradas por ativistas católicos conservadores, e alguns representantes da extrema direita do espectro político francês, onde é possível ver fotos de fetos, ultrassons e relatos de abortos forçados que causam ansiedade.

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"Meu marido exige que eu faça um aborto. Na verdade, ele cometeu suicídio alguns anos depois", relata um depoimento publicado em uma dessas contas. "Essa criança teria 25 anos de idade hoje", continua o texto. Esses relatos são geralmente apoiados por linhas de ajuda: o objetivo é claro: dissuadir as mulheres de fazer um aborto.

Na França, onde o aborto foi descriminalizado graças à Simone Veil em 1975, o número de procedimentos permaneceu relativamente estável nos últimos vinte anos. Em 2023, no entanto, foram registrados 243.623 abortos, 8.600 a mais do que no ano anterior, de acordo com um estudo recente da Diretoria de Estatísticas dos Ministérios Sociais (Drees). As mulheres com idade entre 25 e 29 anos foram as que mais abortaram no país, segundo informações oficiais.

Em 2017, a França ampliou o conceito do crime de obstrução ao aborto, que agora pune não apenas ações físicas, mas também pressão psicológica ou campanhas de desinformação. As penalidades podem ser de até dois anos de prisão e uma multa de € 30.000 (cerca de R$ 185 mil, segundo o câmbio atual).

O que a lei diz hoje na França?

Desde então, as regras que regem o aborto na França mudaram em várias ocasiões. Entre as principais medidas, o prazo legal para se interromper uma gravidez foi ampliado para 12 e depois para 14 semanas. O aborto agora é totalmente coberto pelo seguro de saúde, de maneira universal. O período de "reflexão" foi abolido e a autorização dos pais não é mais necessária para menores de idade, embora eles devam estar acompanhados por um adulto durante o procedimento.

Um estudo do Institut national d'études démographiques (INED) destaca o fato de que o aborto medicamentoso se tornou o método preferido (80% dos procedimentos), em vez do aborto cirúrgico, e também aponta para um aumento no número de abortos realizados fora dos estabelecimentos de saúde franceses.

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Justine Chaput, estudante de doutorado do INED e da Universidade de Paris 1, declarou à agência AFP que, apesar da diversidade de métodos de tratamento autorizados, os "obstáculos" ao aborto "persistem" na França: "Há variações estatísticas significativas entre os departamentos" entre os diferentes tipos de aborto, o que sugere que "a oferta é desigual em todo o país e que as mulheres estão se adaptando".

Isabelle Derrendinger, presidente do Conselho da Ordem das Doulas na França, sugere a criação de um diretório de profissionais que realizam abortos: essa medida barata "pouparia tempo e estresse às mulheres", segundo declarações à mídia francesa Brut.

Também pode ser difícil conseguir uma consulta rapidamente para efetuar o procedimento no país. Para melhorar a situação, "os hospitais precisam receber um orçamento maior que possa ser usado exclusivamente para atividades de planejamento familiar", disse à AFP nesta quinta-feira (16) a Dra. Joëlle Belaisch-Allart, presidente do Colégio Nacional Francês de Ginecologistas e Obstetras.

(RFI com agências)

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