Remédios contra doença de Parkinson que causam vícios em sexo e jogos enfrentam justiça na França

Uma investigação exclusiva da Radio France revelou nesta sexta-feira (17) que alguns medicamentos eficazes contra a doença de Parkinson apresentam efeitos colaterais graves como comportamentos compulsivos, dependência de jogos e impulsos violentos. Apesar do silêncio que ronda o problema, considerado tabu, duas vítimas francesas decidiram processar a GSK, fabricante de um dos medicamentos no país.

A doença de Parkinson é causada pela falta de dopamina, um neurotransmissor responsável pela regulação do desejo e do prazer. No entanto, os tratamentos utilizados para tratar essa condição, conhecidos como dopaminérgicos, podem também desestabilizar o sistema de recompensa do cérebro, gerando impulsos e até vícios.

O risco está particularmente associado a uma classe de medicamentos: os agonistas dopaminérgicos, como o Requip, utilizado por cerca de 48 mil franceses que sofrem dessa doença, segundo informações desta sexta-feira (17) do portal France Info.

Como 273 mil franceses, Stéphane Grange vive com a doença de Parkinson, uma condição para a qual não há cura, ressalta a mídia francesa. Os tratamentos ajudam a controlar os tremores e a rigidez nos movimentos. O executivo da região parisiense começou a tomar Requip, medicamento fabricado pelo laboratório GSK, em 2019.

Inicialmente, seus sintomas físicos diminuíram, marcando o que é conhecido como a fase de "lua de mel". Nessa etapa, os pacientes se sentem significativamente melhor devido ao tratamento e, portanto, têm uma tendência natural a continuar com o uso, sem perceber a relação entre o medicamento e os vícios que surgem. Os problemas podem se manifestar à medida que as doses aumentam para compensar a progressão da doença.

No caso de Grange, ele se tornou viciado em jogos de azar, sexo e passou a gastar dinheiro de maneira descontrolada, acumulando uma dívida superior a € 90 mil em menos de dois anos.

Em 15 de fevereiro de 2024, o homem de cinquenta e poucos anos processou o gigante farmacêutico GSK no tribunal judicial de Nanterre (cidade ao oeste de Paris), conforme revelado pelo jornal francês Le Canard Enchaîné.

A empresa britânica comercializa o Requip na França desde 1997, mas demorou a fornecer informações claras sobre os efeitos colaterais graves do medicamento. Segundo a imprensa francesa, Grange busca responsabilizar o laboratório e estabelecer o valor da indenização. A audiência está agendada para novembro de 2025.

Um em cada 2 pacientes apresenta distúrbios no controle de impulsos

Jean-Christophe Corvol, professor de neurologia no hospital parisiense Pitié-Salpêtrière, realizou com sua equipe um estudo de grande escala publicado em 2018 na revista científica Neurology, que mostra que o caso de Stéphane Grange está longe de ser o único.

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O artigo aponta que um em cada dois pacientes tratados com agonistas dopaminérgicos desenvolve distúrbios no controle dos impulsos dentro de cinco anos. No entanto, a GSK não leva esse estudo em consideração para atualizar a bula do Requip. "Não estou no lugar dos laboratórios, mas ao menos seria possível incluir os dados de alguns estudos para informar melhor a população", comentou o professor Corvol à France Info.

Segundo a reportagem, Stéphane Grange gostaria justamente de obrigar o fabricante a alertar mais claramente os pacientes, para que tomem plena consciência desses riscos.

A justiça francesa solicitou a Corvol, neurologista de referência no tratamento da doença de Parkinson, que fornecesse sua expertise sobre o caso de Stéphane Grange. Em seu relatório, o professor estabelece uma ligação "de causalidade e sua natureza certa e exclusiva entre os distúrbios no controle dos impulsos e o uso de Requip".

O laboratório propôs a Stéphane Grange um acordo, com uma indenização no valor de € 50.000, além de uma cláusula de confidencialidade. Mesmo estando ainda endividado, Grange recusou a oferta da GSK, que se recusou até o momento a falar com a imprensa na França sobre a decisão.

Compulsão por comida e apostas online

Ao descobrir o depoimento de Stéphane Grange no site francês Mediapart, uma paciente de Parkinson também em tratamento com Requip teve a impressão de estar lendo a própria história.

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Ela aceitou testemunhar, mas com a condição de usar um nome fictício, Sandrine. "Estou com meu companheiro há mais de 30 anos. Isso aumentou a nossa vida sexual. Eu pensava nisso todos os dias, tentava ter uma relação diária. No começo não era um problema para mim, mas isso se tornou uma obsessão, de dia, de noite, em qualquer lugar, eu tentava ter uma relação sexual", revelou. Além disso, ela afirma ter desenvolvido uma compulsão por comida, com impulsos incontroláveis que a fazem ganhar quase 15 quilos em seis meses.

A mulher de cinquenta e poucos anos também realizou compras frenéticas e sem sentido, como uma piscina que ocupa praticamente todo o terreno da família. E, principalmente, Sandrine se tornou viciada em apostas online, tendo perdido todas as suas economias, antes de esvaziar a conta bancária do filho.

Sandrine, no entanto, é preparadora de remédios de farmácia e tem o hábito de ler as bulas. Ela revelou que quando estava à beira do suicídio, finalmente se confiou a uma amiga, também da área, e foi ela quem fez a conexão entre seu comportamento e o Requip.

Como revelou a célula de investigação especial da Radio France, a amiga também decidiu, em 2024, iniciar uma luta judicial contra a GSK. Ela quer que o laboratório informe de maneira mais clara sobre os riscos de efeitos adversos que não pôde prever.

"Serial cat killer"

O medicamento destruiu vidas e famílias, como a de um diretor de um grande industrial local. O que o alivia, segundo conta, é atrair gatos com latas de patê, prendê-los entre os joelhos para deslocar suas patas, numa espécie de tortura dos animais.

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Usando um nome fictício, Patrick, ele aceitou compartilhar seu testemunho com o Mediapart e, em seguida, com a célula de investigação da Radio France, "com o objetivo de ajudar os pacientes que não sabem em que lamaçal podem se encontrar com esses tratamentos, para que suas famílias também façam a conexão quando eventos estranhos acontecem e os pacientes não dizem nada, porque não conseguem expressar".

Algoritmo para ajustar doses

"Não há muitas alternativas. O melhor tratamento para o Parkinson é o tratamento de reposição dopaminérgica. Quando não é mais possível usar os agonistas, utiliza-se outro tratamento dopaminérgico, a levodopa. E, em alguns casos mais específicos, pode-se recorrer à estimulação cerebral profunda, com dispositivos semelhantes a marcapassos cerebrais, que permitem obter o mesmo efeito da levodopa, mas de forma contínua", afirmou o especialista Jean-Christophe Corvol.

A atividade física e a fisioterapia também têm mostrado bons resultados, mas muitas vezes não são suficientes para controlar os movimentos. Do lado dos neurologistas, as prescrições devem ser feitas sob medida.

"Algumas vezes ajustei a dosagem do tratamento dopaminérgico de acordo com o que o paciente gastava em bilhetes de raspadinha", testemunhou o professor Corvol.

Para ajudar os neurologistas a perceberem melhor os riscos de dependência e adaptarem os tratamentos, sua equipe desenvolveu um algoritmo de previsão dos perfis mais propensos a desenvolvê-las, levando em consideração fatores como idade ou dosagem, com o auxílio da inteligência artificial. O dispositivo será testado a partir de 2025, e os resultados não são esperados antes de três ou quatro anos.

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(Com agências e imprensa francesa)

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