"Guantánamo simboliza fracasso da comunidade internacional em proteger direitos fundamentais", diz especialista
Ler resumo da notícia
Os Estados Unidos já começaram a enviar imigrantes para a prisão de segurança máxima de Guantánamo, em Cuba, apesar das críticas de vários especialistas, que contestam a detenção de migrantes em um local que tradicionalmente acolhe terroristas. Mas o novo chefe da Casa Branca não parece alheio aos comentários e não descarta "exportar" detentos também para El Salvador, país conhecido por seu sistema carcerário linha-dura, que já está sendo apelidado de "Guantánamo 2.0".
Um "Guantánamo 2.0" que pode manchar a imagem do país ou uma oportunidade lucrativa? Os salvadorenhos estão divididos após a proposta do presidente Nayib Bukele de abrigar em prisões locais criminosos dos Estados Unidos. Autoridades internacionais de Direitos Humanos e lideranças mundiais contestam a iniciativa.
A oferta "generosa", segundo o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, em visita ao país na segunda-feira, não conquistou consenso. Bukele, reeleito com mais de 80% dos votos, é amplamente aprovado por sua "guerra" contra as gangues, que reduziu drasticamente a criminalidade em um dos países mais violentos do mundo.
"Bukele está tentando livrar o país do mal, por que trazer mais criminosos?", questiona Georgina Garcia, dona de casa de 60 anos, entrevistada pela AFP em uma praça de San Salvador.
"Não precisamos de mais criminosos aqui", concorda o ex-guerrilheiro Juan José Ordoñez, de 60 anos. "Cada país deve cuidar dos seus próprios criminosos. Se os Estados Unidos têm criminosos, que lidem com eles. Já temos problemas suficientes aqui", disse.
Por outro lado, alguns salvadorenhos veem potencial de vantagem no acordo. Para o ex-militar José Alberto Claros, de 65 anos, se Bukele "negociar algo benéfico para o país, como frear as deportações e regularizar nossos compatriotas ilegais nos EUA, a ideia é boa".
O jornaleiro Juan Ascencio, de 67 anos, também apoia a proposta, "se houver dinheiro envolvido".
Custo "relativamente baixo"
O acordo prevê um pagamento para financiar o sistema penitenciário salvadorenho, parte da ofensiva contra as gangues. Até o momento, o governo dos EUA não alterou o status que protege cerca de 232.000 salvadorenhos da deportação.
"Se pudéssemos fazer isso, eu faria sem hesitar", disse Donald Trump na terça-feira, afirmando estar "estudando a questão". Para ele, "não é diferente do nosso sistema prisional, mas custaria muito menos e seria altamente dissuasivo".
Um custo "relativamente baixo" para os EUA, mas "significativo" para El Salvador, segundo Bukele.
Para Ingrid Escobar, diretora da ONG salvadorenha "Socorro Jurídico Humanitário", "nos tornaríamos um Guantánamo 2.0, algo inaceitável", referindo-se à base militar dos EUA em Cuba, conhecida por sua prisão para suspeitos de terrorismo após o 11 de setembro.
O plano é enviar prisioneiros dos EUA para o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), inaugurado em janeiro de 2023 e considerada a maior prisão da América Latina. Com capacidade para 40.000 detentos, atualmente abriga cerca de 15.000, segundo estimativas.
Bukele afirmou que aceitaria criminosos de "qualquer nacionalidade", incluindo membros da gangue Mara Salvatrucha (MS-13), que atua em El Salvador, Honduras e Guatemala, além do Tren de Aragua, grupo venezuelano com presença em toda a América Latina e nos EUA.
No entanto, para Ingrid Escobar, "se fosse feita uma consulta popular, a população não concordaria".
Centro de detenção
Donald Trump, que lançou uma ampla ofensiva anti-imigração desde os primeiros dias de seu retorno ao poder, anunciou há menos de uma semana um polêmico projeto de um centro gigante de detenção para 30.000 migrantes em Guantánamo, conhecida por sua prisão militar aberta após os ataques de 11 de setembro de 2001.
Esse centro de detenção, já existente, mas que o presidente americano pretende operar em "capacidade total", é separado da prisão onde ainda estão detidos quinze prisioneiros.
Um voo levando os primeiros migrantes ocorreu na terça-feira "com cerca de uma dúzia de estrangeiros em situação irregular considerados altamente perigosos", informou um responsável do Departamento de Defesa dos EUA, sob condição de anonimato. "Eles serão alojados no centro de detenção [...], mas não ficarão junto aos detentos de alta periculosidade", acrescentou, referindo-se aos prisioneiros suspeitos de terrorismo.
Mais cedo, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, anunciou ao canal Fox Business que os primeiros voos dos Estados Unidos para Guantánamo estavam "em andamento" na terça-feira.
O novo ministro da Defesa, Pete Hegseth, descreveu Guantánamo na segunda-feira como "o lugar perfeito" para migrantes sem documentos, durante uma visita à fronteira com o México.
Críticas de Cuba e o legado de Guantánamo
Após o anúncio dessa medida por Donald Trump no final de janeiro, o presidente cubano Miguel Díaz-Canel denunciou um "ato brutal" em "território cubano ilegalmente ocupado". A prisão militar de Guantánamo, um enclave americano na costa sudeste de Cuba, foi inaugurada em janeiro de 2002, quatro meses após os atentados de 11 de setembro, durante o governo de George W. Bush.
Para muitas ONGs de defesa dos direitos humanos, Guantánamo tornou-se um símbolo de abusos e arbitrariedades na luta contra o terrorismo, devido às condições extremas de detenção e ao uso da tortura. Os presidentes democratas Barack Obama e Joe Biden tentaram, sem sucesso, fechar a prisão.
Em mais de vinte anos, cerca de 800 detentos ? com um pico de 680 em 2003 ? passaram por Guantánamo. Documentos governamentais revelados pelo New York Times em setembro de 2024 mostraram que a base militar vinha sendo usada há décadas pelos Estados Unidos para deter migrantes interceptados no mar.
Denúncias de violações de direitos humanos
A prisão de Guantánamo, em Cuba, tem sido denunciada há décadas como um centro de violações de direitos humanos, incluindo tortura e detenções extrajudiciais. As organizações internacionais reagiram rapidamente.
"É lamentável que este local, que simboliza justamente a ausência de direitos, pois ali estão e estiveram pessoas acusadas de terrorismo, cujo devido processo foi desrespeitado e que foram torturadas, seja o espaço escolhido por Trump para deter migrantes indocumentados, equiparando-os a criminosos e terroristas", declarou à RFI Jimena Reyes, responsável para as Américas da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH).
Ela disse ainda que "Guantánamo simboliza o fracasso da comunidade internacional em proteger os direitos fundamentais. Manter migrantes e prisioneiros em condições desumanas é inaceitável e perpetua práticas contrárias ao direito internacional".
(RFI com AFP)
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.