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'Serra elétrica': Milei virou inspiração para Musk e tenta virar líder global

O presidente da Argentina, Javier Milei, se reúne com o presidente eleito dos EUA, Donald Trump Imagem: Divulgação/Presidência da Argentina

Márcio Resende;

Correspondente da RFI em Buenos Aires

10/02/2025 05h30Atualizada em 10/02/2025 12h59

Nesta semana, o governo argentino anunciou que vai sair da Organização Mundial da Saúde (OMS) e começou a restringir direitos a algumas minorias. O presidente Javier Milei também confirmou que avalia sair do Acordo de Paris sobre clima, uma decisão que colocaria em risco o acordo do Mercosul com a União Europeia. Desde que o republicano Donald Trump foi eleito, o chefe de Estado argentino acelerou o processo do que ele mesmo definiu como uma "Guerra Cultural", replicando as decisões do aliado e até redobrando a aposta. Quais são as vantagens e os custos de se acoplar à agenda de Trump?

O que aconteceu

Javier Milei fez campanha eleitoral em 2023 avisando que teria dois aliados principais: Estados Unidos e Israel. Porém, o que seria uma aliança política, mesmo que incondicional, tem-se verificado como uma cópia de iniciativas, como se Milei se acoplasse à agenda de Trump, seja qual for.

O presidente argentino foi o convidado estrela da posse de Trump. Nenhum outro líder internacional ficou tão perto do novo chefe da Casa Branca na hora do juramento, logo atrás dos ex-presidentes norte-americanos.

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Eufórico pelo destaque, Milei foi direto à Suíça, onde, no Fórum Econômico Mundial de Davos, fez um discurso mais veemente e radical do que o de Trump. Quando se esperava que falasse de economia, traçou a lista de elementos contra os quais lutaria por se tratarem da agenda Woke: "Feminismo, diversidade, inclusão, equidade, imigração, aborto, ecologismo, ideologia de gênero, entre outros", disse. Aliás, Milei só começou a usar o termo "Woke" quando Trump foi eleito. Talvez, se falasse sobre economia, o discurso liberal do líder argentino se chocasse com o protecionista de Trump.

O cientista político Cristian Buttié, diretor da consultora CB Opinião Pública e referente na Argentina, explica à RFI que, com a posse de Trump, Milei sente-se fortalecido no seu papel de protagonista. "Milei agora não quer mais ser apenas um referente dessa nova agenda conservadora. Ele se vê como um líder internacional das ideias de liberdade que promoverá essas ideias pelo mundo mesmo depois de deixar a Presidência", observa Buttié.

Aposta redobrada

Ao seguir os passos de Trump e anunciar a saída da Argentina da Organização Mundial da Saúde (OMS), Milei foi mais longe que o líder norte-americano: o governo argentino avalia denunciar penalmente o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, no Tribunal Internacional de Haia. Com base no estatuto de Roma, Milei poderia acusá-lo de crimes contra a humanidade por promover o prolongado confinamento de civis pelo mundo durante a pandemia da Covid-19.

As chances de essa denúncia se tornar uma condenação são poucas, mas o resultado importa menos do que a representação mundial da liberdade. Aliás, Milei fala pouco em democracia e muito em liberdade, em livrar-se do Estado.

Outro exemplo, é o pioneirismo de Milei em promover a desregulação do Estado. Nesse caso, é o argentino quem inspira o norte-americano, através de Elon Musk: o governo Milei criou o Ministério de Desregulação e Transformação do Estado que inspirou a criação do Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos, liderado pelo dono da Tesla.

O ministro da pasta argentina, Federico Sturzenegger, e o próprio presidente Milei conversam regularmente com Elon Musk, quem se inspira na chamada "serra elétrica" de Milei. O governo argentino está a dias de anunciar que mais de 50 organismos do Estado serão eliminados, dissolvidos ou transformados.

Eixo Buenos Aires-Washington

Se até pouco tempo, o eixo da integração da Argentina passava por Brasília, agora os vizinhos interessam pouco. Dentro de duas semanas, Javier Milei estará outra vez com Donald Trump em Washington. O líder latino-americano vai viajar para um novo encontro da Conferência Política de Ação Conservadora (CPAC, na sigla em inglês). Esse será o segundo encontro com Trump em dois meses de governo.

No ano passado, Milei esteve com Trump outras duas vezes, também no contexto da CPAC. Das 18 viagens internacionais que o argentino fez desde que assumiu há 14 meses, oito foram aos Estados Unidos. A próxima será a nona. E será o terceiro encontro com Elon Musk.

Para Cristian Buttié, essa proximidade de Milei com Musk, dono da rede social X, permite ao argentino ter mais ferramentas para aprofundar a sua mensagem e, portanto, a sua liderança. "Estar ao lado desses magnatas da tecnologia, que romperam a agenda progressista, praticamente hegemônica, permite a Milei ter ferramentas para aprofundar a sua mensagem disruptiva", diz o cientista político à RFI.

Assim, Milei não promove as relações entre Estados, nem mesmo bilaterais, mas relações pessoais. Quanto mais de fora da política e quanto mais empresários, maior a afinidade.

Cópia, imitação e inspiração

Nesta semana, foi a saída da OMS, embora o processo de retirada possa levar até um ano. Se, dentro de pouco, Donald Trump recuar nessa decisão, assim como fez com as aplicações de tarifas à Colômbia, ao México e ao Canadá, Milei provavelmente também recue. Se a OMS for reformada e for liderada por um norte-americano indicado por Trump, os Estados Unidos poderiam mudar de ideia, levando a Argentina a adotar o mesmo caminho.

O presidente Milei também avalia retirar a Argentina do Acordo de Paris sobre o Clima. O latino-americano não acredita que o aquecimento global seja causado pelo homem, mas por ciclos naturais de temperaturas do planeta.

O problema desse negacionismo é que uma retirada de Milei congelaria o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, que inclui cláusulas sobre o meio ambiente. Pelo mesmo motivo, prejudicaria também a entrada da Argentina na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Outro ponto que Milei avalia é retirar a Argentina da Comissão de Direitos Humanos da ONU.

O capítulo referente ao combate à imigração ilegal também ganhou força. O governo argentino já anunciou um projeto de lei que proíbe o acesso de estrangeiros não-residentes a hospitais públicos e universidades. Em algumas províncias, a medida é aplicada por hospitais a turistas brasileiros, mesmo quando o Brasil atende a todos os turistas estrangeiros. A Argentina também quer controlar as fronteiras com a Bolívia e com o Brasil como forma de controlar o contrabando e o tráfico de drogas.

Também aparecem modificações na lei de Identidade de Gênero e até no Código Penal argentino. Nesse âmbito, o governo argentino segue os passos de Trump, que só admite a existência de masculino e feminino. Por isso, vai acabar com os documentos de identidade não-binários e com as cotas para transexuais em dependências do Estado e empresas públicas. Outro objetivo é retirar o peso legal do agravante de crimes contra mulheres, o feminicídio.

"O que mobiliza a sociedade argentina não é essa agenda. Milei foi eleito para baixar a inflação e para aumentar a segurança pública. A inflação está baixando e, por isso, o governo mantém o nível de aprovação. Mas a insegurança está aumentando e essa é a preocupação que cresce na sociedade argentina", separa Buttié.

Benefícios e custos

Milei aposta na ajuda de Trump para a Argentina conseguir um rápido e generoso acordo financeiro com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Logo depois, pretende que essa sintonia atraia investimentos diretos ao país.

A maior aposta é num acordo de livre comércio entre Argentina e Estados Unidos, mas esse ponto coloca a Argentina em rota de colisão com o Brasil porque a Argentina não poderia fechar um acordo se algum membro do Mercosul for contra. Esse poderia ser um custo. Essa associação também evitaria que a Argentina fosse alvo de tarifas protecionistas por parte de Trump, mas prejudicaria a relação com a China, segundo sócio comercial, depois do Brasil.

Milei sabe que, na batalha comercial e tecnológica com a Pequim, Buenos Aires tem de ficar do lado de Washington.

A Argentina também terá de bloquear nos foros regionais iniciativas dos países latino-americanos que afetem os interesses norte-americanos. Isso, aliás, já começou. Há uma semana, na reunião extraordinária da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), a Buenos Aires impediu que fosse emitida uma condenação às deportações de imigrantes ilegais por parte dos Estados Unidos.

No campo doméstico, Milei pode pagar um preço mais alto

Segundo Cristian Buttié, todas essas medidas ajudam Milei a consolidar um núcleo de eleitores, mas afasta a maioria dos moderados. Consolida-se um piso eleitoral, mas não se perfura um teto que permita maioria eleitoral. Esse é o risco de Milei: radicalizar ao ponto de perder as eleições.

"Essas medidas podem promover danos colaterais que tenham impacto nos eleitores do governo. O sistema argentino de eleições é de dois turnos, diferentemente do norte-americano. No segundo turno, ficam enfraquecidos aqueles que se dedicaram a fidelizar pisos e não a perfurar tetos. Milei está-se fechando e isso é um erro porque o afasta do segmento que inclina a balança eleitoral e que não forma parte de nenhum discurso dicotômico", adverte Cristian Buttié, da CB Opinião Pública.

Em janeiro, segundo a CB, Milei perdeu quatro pontos dos 53% de imagem positiva que tinha em dezembro. Ainda é cedo para saber se há uma tendência de queda ou se é uma oscilação dentro da estabilização que tem caracterizado o governo desde que assumiu.

"Até agora, Milei nunca superou os 54%, mas também nunca ficou abaixo dos 47%, mesmo depois de um brutal ajuste fiscal. Uma tendência seria somente depois de quatro meses com mais de 10 pontos para cima ou para baixo", indica Buttié.

Em outubro, a Argentina terá eleições legislativas, cruciais para Milei ampliar a sua base parlamentar e avançar em reformas estruturais.

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