Após demissões em massa e ataques de Trump, pesquisadores americanos se organizam em defesa da ciência
Nos Estados Unidos, a comunidade científica passa por uma onda de demissões em massa desde a decisão do presidente Donald Trump de cortar o financiamento para a pesquisa em todos os setores. Com cortes em seus trabalhos ou simplesmente demitidos, os pesquisadores organizam o movimento "Stand Up for Science", com protestos convocados para sexta-feira (7) em todo o país e no mundo.
Géraud Bosman-Delzons, da RFI
Em 20 de janeiro de 2025, Donald Trump se sentou no meio do palco do Capitol One Arena, em Washington, para assinar decretos diante de 20.000 apoiadores. Os famosos documentos são uma arma presidencial que permite tomar medidas rápidas sem passar pela lentidão do processo democrático. No entanto, eles não têm força de lei e alguns já foram contestados.
Entre as dezenas de decisões, destacam-se a retirada (pela segunda vez, depois de 2017) dos Estados Unidos do Acordo de Paris sobre o clima, a exploração do petróleo no Alasca ou mesmo a facilitação da demissão de funcionários e agentes públicos.
A assinatura dos decretos representou os primeiros ataques contra a ciência e a pesquisa. Em seguida, o diretor do Departamento de Eficiência Governamental (Doge), Elon Musk, enviou imediatamente suas equipes especializadas na redução de custos às principais organizações estatais.
Encarregados de impor cortes radicais em agências federais, eles não deram trégua: a ajuda financeira foi cortada para todos os projetos de pesquisa direta ou indiretamente vinculados aos decretos assinados. Os funcionários estaduais foram forçados a renunciar ou simplesmente demitidos.
As ciências estão na linha de frente do enxugamento agressivo da administração, especialmente as "ciências da sustentabilidade", seja humana ou ambiental. Mas a pesquisa médica não fica para trás. A National Institutes of Health (NIH), principal agência de saúde pública dos Estados Unidos que financia 90% da pesquisa biomédica no país, assim como a National Science Foundation (NSF), uma agência independente que financia pesquisas básicas, perderam 10% e 6% de seus funcionários em fevereiro.
As ciências ambientais e climáticas são logicamente visadas. Kyla Bennett, cientista de formação e ex-executiva da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), é diretora da Peer, a única ONG especializada em proteção legal para funcionários de agências ambientais, incluindo denunciantes.
"Pelo menos 300 funcionários federais de diferentes agências entraram em contato conosco porque foram demitidos ilegalmente ou colocados em licença administrativa", disse à RFI, enfatizando a "enorme confusão" que reina em todos os níveis das agências.
A maioria destes funcionários vem da EPA, da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA), do Escritório de Gestão Territorial (BLM) e dos Parques Nacionais. "Algumas pessoas são demitidas, readmitidas e demitidas novamente, tudo em dois dias. Eles (o governo) não sabem o que estão fazendo porque são totalmente incompetentes e estúpidos", diz Bennett.
A situação é especialmente caótica na EPA. Ninguém parece capaz de dizer se os cortes de 65% anunciados por Donald Trump em 26 de fevereiro são dirigidos ao orçamento ou aos trabalhadores.
Em uma carta enviada em 4 de março ao administrador da agência e vista pela RFI, senadores americanos pedem esclarecimentos, afirmam que a EPA não pode cumprir sua missão se tais cortes ocorrerem e contestam a legalidade da medida, mencionando a Constituição.
Nenhum número global preciso foi estabelecido. Segundo a AFP, somente desde o início desta semana, houve uma sucessão de anúncios e planos de cortes drásticos de funcionário: entre 40.000 e 50.000 da administração fiscal, mais de 70.000 do Departamento de Veteranos de Guerra e do Departamento de Educação que foi desmantelado, conforme relatado pela mídia americana.
"É um desastre, cada dia traz sua cota de horrores. Somos insultados, humilhados. Mas continuamos trabalhando o máximo que podemos para proteger a saúde de nossos concidadãos", escreveu um deles a Bennett. Poucos ousam falar abertamente, por medo de perder seus empregos ou porque tem esperança de recuperá-los em breve.
"Por que a ciência perturba?"
A ofensiva mais significativa é a que afeta a NOAA, instituição fundamental para as previsões meteorológicas agrícolas, marinhas e terrestres, bem como para os estudos sobre as mudanças climáticas, suas causas, suas repercussões no fundo do oceano e suas inúmeras consequências para as sociedades humanas.
"A indústria alarmista climática", como é descrita pelo Projeto 2025, um documento de 900 páginas que serviu como base para a equipe de Donald Trump, é um inimigo a ser derrotado pela nova administração.
Como prova de que se trata mais de uma guerra ideológica do que de cortes orçamentários, a NOAA e a NASA foram proibidas de participar da última reunião do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o grupo de especialistas da ONU sobre a evolução do clima.
"Eu tinha vivenciado o primeiro mandato de Trump ao escrever o relatório anterior do IPCC. As delegações permaneceram presentes apesar da cessação do financiamento. Desta vez estamos em uma dimensão completamente diferente, cujo objetivo é minar a participação de cientistas americanos", diz a climatologista francesa, Valérie Masson-Delmotte.
"Todos os que trabalham com mudanças climáticas tiveram suas agendas interrompidas. Até as páginas na internet desapareceram", confirma Kyla Bennett.
O desmantelamento também é semântico: os pedidos de financiamento agora não podem conter termos ligado a clima, gênero e a temas de diversidade, inclusão e desigualdades, considerados "woke" pelo novo governo. Além dos laboratórios, toda pesquisa científica acadêmica está sujeita à censura em larga escala, com a universidade sendo considerada "o inimigo interno", de acordo com a visão do vice-presidente J.D. Vance.
"Por que a ciência perturba? Porque acompanha o pensamento crítico e representa uma ameaça aos autocratas", diz Valérie Masson-Delmotte. "A ciência da sustentabilidade se opõe ao lucro imediato."
Kyla Bennett, especialista em poluentes perenes e ex-denunciante, concorda. "Donald Trump está atacando a pesquisa pública porque não entende que o governo federal é um serviço, não um negócio. Pesquisas privadas realizadas pela indústria nem sempre são confiáveis, porque minimizam os riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Mas Trump se preocupa mais com a ganância corporativa do que com a saúde ou o meio ambiente", lamenta a pesquisadora.
Efeitos diretos sobre empregos e economias locais
Os ataques contra a NOAA começaram em 27 de fevereiro, dia em que entre 600 e 900, segundo diferentes estimativas, dos aproximadamente 13.000 funcionários da agência, receberam um e-mail de demissão. Oficialmente, a primeira onda de demissões teve como alvo funcionários em estágio probatório. Mas centenas de executivos e funcionários experientes também foram forçados a sair.
A Waepa, instituição de seguros para servidores públicos e aposentados, alertou em 4 de março que "mais servidores seniores serão visados ??em breve".
No final de fevereiro, Kai-Yuan Cheng, um cientista de atmosfera do laboratório de maior prestígio da NOAA, o GFDL, teve uma hora para arrumar seus pertences antes de ter seu acesso à instituição cancelado. "Trabalhei até o último minuto", disse ele à revista Science. O pesquisador estava trabalhando na previsão de uma "tempestade severa". Ele foi demitido junto com dez de seus colegas.
O mesmo método brutal foi utilizado contra a bióloga Sarah Weisberg, recém-formada em Harvard, especialista em ecossistemas aquáticos dinâmicos, que tinha acabado de ser contratada para trabalhar em um laboratório de Rhode Island, com uma bolsa cofinanciada pela NOAA. Sua equipe, incluindo diretor da pesquisa, foi dizimada e seu trabalho suspenso.
De acordo com a imprensa local de Rhode Island, os efeitos dos cortes já estão sendo sentidos. A pesca e a produção de frutos do mar são atividades econômicas essenciais e o apoio da NOAA é crucial para toda a indústria regional que agora está abalada e preocupada.
"Acredito que isso realmente tem um enorme potencial para prejudicar nossa capacidade de produzir frutos do mar para nosso país", alertou, no jornal The Providence, Robert Rheault, diretor executivo da East Coast Shellfish Growers Association, organização que representa mais de 2.000 pescadores da costa leste americana.
No início de março, a Sociedade Meteorológica Americana alertou que as demissões generalizadas "causariam danos irreparáveis ??e teriam consequências para a segurança pública, a economia, a saúde, o bem-estar, e a liderança global dos Estados Unidos".
Procurado pela RFI, Juan Declet-Barreto, especialista em vulnerabilidade climática da União Americana de Cientistas Preocupados (UCS), dá uma ideia dessas implicações. "A temporada de furacões começa em junho. Os pilotos dos chamados aviões 'caçadores de furacões', que voam dentro dos furacões para medir sua trajetória, pressão atmosférica e força do vento, foram demitidos", relata.
"Isso significa que não há mais ninguém capaz de pilotar esses aviões, coletar esses dados e integrá-los aos modelos de previsão. Mas se não tivermos mais informações que nos permitam saber quando um furacão atingirá a terra, quão forte ele será e quão alto a água do mar subirá e submergirá o litoral, como uma família, um prefeito ou um governador saberá quando evacuar ou abrir abrigos temporários? Muitas pessoas ficarão desprotegidas. Estamos caminhando para o desastre", alerta.
Antecipando a crise social que se desenrola em todo o país, Kyla Bennett se revolta. "Os funcionários públicos federais são aqueles que mantêm os americanos seguros. Eles garantem que possamos respirar ar puro e beber água limpa. O ataque à ciência e aos cientistas nessas agências federais não tem precedentes, e não o toleraremos", afirma.
Cientistas se rebelam
Diante dessa nova situação, a comunidade científica oscila entre o choque e a revolta. Por iniciativa da União de Cientistas Preocupados, fundada em 1969, 48 sociedades representando 100.000 cientistas trabalhando nos 50 estados americanos enviaram uma carta aberta a ambas as casas do Congresso exigindo a proteção dos fundos concedidos à pesquisa e aos cientistas federais. A associação também pediu a liberdade dos pesquisadores de "colaborar internacionalmente" e de "falar em público" e o fim dos ataques contra os chamados programas "DEI" (diversidade, igualdade, inclusão).
"O que estamos vendo não tem precedentes na história dos EUA", disse Melissa Varga, diretora da rede União dos Cientistas preocupados. "Cientistas de todo o país se uniram para exigir que o Congresso cumpra seu dever constitucional e intervenha para preservar a pesquisa científica essencial e o papel das agências federais. As ações desta administração, muitas das quais são ilegais, prejudicarão o povo americano", disse.
No entanto, será preciso muito mais do que uma simples carta de indignação e as múltiplas petições "contra a censura da ciência" para encarnar uma aparência de resistência a um poder com uma poderosa tendência autocrática.
O movimento "Stand up for Science", coordenado por cinco acadêmicos, foi lançado há duas semanas. Atendendo ao seu chamado, milhares de pessoas do mundo da ciência são esperadas para se manifestar em 32 cidades do país, incluindo Washington, nesta sexta-feira.
"Esta é provavelmente a primeira de muitas outras marchas das quais os cidadãos participarão para mostrar seu apoio aos cientistas. Porque quando renunciamos a nossos pesquisadores extraordinários, enfraquecemos a capacidade de fazer nossa sociedade progredir", disse a meteorologista Bernadette Placky à RFI.
Manifestações semelhantes em favor da pesquisa independente já haviam ocorrido em 2017, durante o primeiro mandato de Trump.
Manifestações em Paris
O movimento "Stand Up for Science" está se espalhando para outros países. Um encontro e discursos de cientistas renomados estão planejados para esta sexta-feira em Paris.
Em um comunicado de imprensa na quinta-feira (6), o Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) denunciou "a liberdade acadêmica posta à prova" nos Estados Unidos. "O CNRS está em contato com seus muitos parceiros nos Estados Unidos para apoiá-los e ajudá-los durante o período difícil pelo qual estão passando. A independência dos cientistas e a possibilidade de conduzir pesquisas públicas fundamentais e gratuitas são princípios essenciais para o avanço do conhecimento a serviço da sociedade", diz o documento.
De acordo com um levantamento do New York Times, entre 31 de janeiro e 2 de fevereiro, cerca de 8.000 páginas públicas foram apagadas da internet. Essa limpeza abrangente teve como alvo informações sobre cuidados com veteranos de guerra, sexualidade e gênero, e também pesquisas médicas e científicas.
Milhares de artigos oficiais sobre HIV-AIDS, vacinas para mulheres grávidas ou doença de Alzheimer desapareceram. Recursos importantes para profissionais de saúde agora estariam inacessíveis se não tivessem sido arquivados. Mais de 1.000 páginas de registros do Departamento de Justiça também foram eliminadas, incluindo um artigo sobre violência no namoro entre adolescentes.
O New York Times também destacou a exclusão de mais de 180 páginas do Departamento de Justiça, incluindo todos os dados sobre crimes de ódio, além de 25 páginas do site do IRS, o escritório federal de impostos.
Para salvar o que ainda pode ser salvo, os ativistas estão tentando arquivar bancos de dados científicos antes que sejam excluídos. Um trabalho gigantesco que mobiliza pesquisadores como Lourdes Vera, doutoranda em sociologia e integrante do coletivo Environmental Data and Governance Initiative.
"Nosso direito de saber constitui a base do nosso engajamento cívico e da nossa participação democrática", explica ela à RFI. Quando a administração conscientemente corta o acesso à informação científica e, assim, tira nosso direito de saber, isso equivale ao desmantelamento da democracia", diz. Segundo ela, pelo menos um milhão de páginas foram protegidas, muitas delas em antecipação.
Emocionada, Kyla Bennett chegou a chorar durante a entrevista à RFI. "É difícil para os outros entenderem o que estamos passando. É um golpe de estado. Estamos sob o controle de oligarcas que não se importam com a saúde humana, o meio ambiente ou as pessoas que dedicaram suas vidas a trabalhar para essas agências", se desespera a cientista. "É horrível. Os Estados Unidos sempre tiveram seus problemas, mas continuamos sendo um farol de esperança, e isso foi destruído. Nunca pensei que viveria o suficiente para ver esse dia."
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