Topo

"Manas", de Marianna Brennand: ficção que traz à tona histórias reais de incesto e pedofilia na ilha de Marajó

23/03/2025 16h37

O choque e o horror do incesto e da pedofilia por meio da sutileza. Em "Manas", primeiro longa-metragem de ficção de Marianna Brennand, a cineasta aborda a violência de gênero sem mostrar as agressões de forma explícita. A obra, que estreia nesta quarta-feira (26) na França, foi uma das escolhidas para abrir a 37ª edição do festival Cinélatino, em Toulouse. 

 

Daniella Franco, enviada especial da RFI ao Cinélatino

Relacionadas

Marcielli é uma garota de 12 anos que leva uma vida pacata e feliz junto aos pais, dois irmãos e irmãs em uma palafita na ilha de Marajó, no Pará. Entre a imensidão da floresta e das águas do rio Tajapuru, ela vê seu cotidiano de aventuras vir mundo abaixo a partir de sua primeira menstruação. A passagem da infância à adolescência a leva a ser intimada a dividir a cama com o pai, que também a obriga a participar de repentinas sessões de caça junto a ele, onde as agressões têm início.

Marcielli terá o mesmo destino da irmã mais velha, que deixou o lar por meio de um casamento para nunca mais voltar, mas a adolescente vai lutar para que sua história não seja perpetuada. Na batalha pelo fim do seu martírio, também é explorada sexualmente fora do ambiente familiar, onde o silêncio da mãe, grávida, e o do irmão mais velho, é inabalável.

Em entrevista à RFI, Marianna Brennand revela que a história de Marcielli, apesar de ser ficção, é baseada em relatos que colheu ao longo de dez anos de produção de "Manas". A ideia do longa teve origem em um encontro com a cantora Fafá de Belém, natural do Pará, que a apresentou a uma crueldade que jamais imaginou que pudesse existir. No início, a intenção era realizar um documentário, mas a cineasta teve de repensar seu objetivo.  

"O filme aconteceu como ficção porque logo no início da pesquisa eu entendi que seria impossível para mim contar essa história de uma maneira documental", diz a cineasta. "Isso significaria colocar mulheres e crianças que foram vítimas de traumas e de violências muito grandes na frente da câmera para recontar essas histórias. Isso faria com que elas vivessem esses abusos", reitera.

Sem cenas de violência sexual

Outra escolha que Marianna classifica de "balizadora" neste trabalho foi jamais exibir qualquer cena de agressão sexual em "Manas". "Como mostrar o que ninguém quer ver e o que não deveria acontecer?", questiona. "A partir do momento em que eu mostro essa violência eu estou quase autorizando ela acontecer", justifica.

A cineasta salienta que sua intenção não era "falar da violência gerando mais violência, mas a subtraindo". Por isso, a escolha de Marianna foi abordar a cruel realidade vivida pela personagem Marcielli por meio de elementos cinematográficos que não tornassem as agressões sexuais visualmente explícitas.

Para a diretora, era essencial que a história fosse contada priorizando a dignidade das mulheres e seus corpos. "O 'Manas' mostra que é possível tocar na mais terrível das realidades com delicadeza e com ética, respeitando a nossa existência", ressalta.

Um filme real e universal

A cineasta conta à RFI que quando deu início a seu trabalho, acreditava que os dramas vividos por meninas e mulheres na ilha de Marajó eram um problema local e que sensibilizariam o público brasileiro. Mas, aos poucos, sua própria visão mudou.

"Através de uma história que é muito específica, dentro de um contexto geográfico e socioeconômico particular, a gente fala a todas as mulheres", diz. "Infelizmente é raro você encontrar uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de violência ao longo da vida. Então me interessava muito que através da Marcielli, do despertar e busca de liberdade para sair dessa situação, a gente pudesse também falar com outras mulheres", complementa.

Além de uma narrativa e um roteiro impactantes, a cineasta também contou com um elenco brilhante, capaz de trazer ainda mais veracidade ao drama. Por isso Marianna fez questão que os atores mirins fossem originários do Pará. É o caso da personagem principal, encarnada por Jamilli Correa, natural de Belém.

"Eu queria muito descobrir a Marcielli", diz Marianna, destacando que trabalhar com crianças da região trouxe uma carga a mais de realidade ao filme.

Papel de Dira Paes

Dira Paes interpreta a policial Aretha, inspirada em um delegado que atua na região do Marajó, no combate à exploração sexual infantil. A emocionante cena em que Marcielli é resgatada em uma balsa foi baseada em uma operação realizada no local.  

"O personagem da Aretha foi escrito para Dira, ela está no projeto desde o início, desde o primeiro edital", revela. "Ela é uma grande amiga, uma grande parceira, uma admiração minha, uma grande figura do cinema brasileiro e uma mulher paraense: ativista, feminista, que conhece a realidade do local."

De fato, uma das grandes características de "Manas" é levar o espectador a acreditar na crueldade da trama, ainda que as cenas de agressão estejam todas implícitas. "É tudo muito real", salienta Marianna, que espera que seu filme contribua para o combate às violências sexuais onde for exibido. 


Últimas notícias