Inflação persistente dos alimentos reflete falhas do modelo agrícola exportador do Brasil
Os preços dos alimentos puxam a inflação para cima há anos no Brasil, com impacto em toda a economia. A conjuntura externa contribui para a alta dos preços, mas não explica tudo: a inflação de produtos básicos como carne, tomates, ovos e café reflete gargalos antigos da produção agrícola no país e ilustram o despreparo para lidar com o desafio de peso da crise climática.
Os preços dos alimentos têm respondido por cerca de 25% da inflação, segundo dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A desvalorização cambial acentuada em 2024 encarece as importações de fertilizantes e de commodities cotadas no exterior, como soja e milho, base das rações animais, e estimula as exportações. As de ovos, um dos vilões da inflação, subiram 342% em março.
"Por ser um grande exportador e por pegar um período em que os preços no mundo cresceram, não há lógica na racionalidade dos empresários em vender lá fora por um valor e aqui dentro por um menor. Neste século, a FAO indica que os preços dos alimentos em termos reais subiram 72%", aponta José Giacomo Baccarin, professor de Economia Rural da Unesp e um dos responsáveis pelo programa Fome Zero.
"Isso tem também um efeito indireto nos produtos em que a gente não tem grande participação internacional, como arroz, feijão, frutas e verduras, porque eles disputam área com os produtos comercializados - você produz mais soja e menos feijão", assinala.
Assim, uma potência agrícola como o Brasil pode se encontrar com escassez de oferta para o seu mercado interno, explica o economista André Furtado Braz, coordenador dos Índices de Preços do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas. "A gente produz tanto que daria para dar conta de exportar e ainda abastecer o mercado brasileiro. A questão é que há um descasamento no processo: você dá conta, mas não o tempo todo", afirma. "Em algum momento, como quando o rebanho está reduzido, no ciclo da pecuária, se junta com uma moeda desvalorizada, você pode ter um choque de oferta."
Remédios de curto prazo
Essa dinâmica é acentuada por decisões com efeito de curto prazo do governo, como aumentar as importações para baixar os preços - mas que prejudicam os pequenos produtores nas safras seguintes.
"Se você compra leite em pó importado no período de entressafra, você acaba não permitindo que o pequeno produtor recupere o seu aumento de custos - e aí ele quebra. Na próxima safra, você gerou um problema doméstico, porque se ele não parou em pé, na próxima safra a oferta vai ser menor e você vai ter um problema no leite", salienta Braz. "É uma falta de visão de perceber o quanto essas coisas atrapalham. Você tem que importar em situações muito específicas", avalia.
Somam-se a isso falhas estruturais da cadeia produtiva no Brasil, como a logística, ainda baseada no transporte rodoviário ineficiente, e a armazenagem. Apesar da ter uma vasta rede de rios que atravessam o país, modais de transporte fluvial quase não são usados e o marítimo é subutilizado, assim como o ferroviário. O transporte de carga por caminhões, muitas vezes em estradas sequer pavimentadas, encarece o preço final do alimentos.
Debate sobre estoques reguladores
Em meio à inflação persistente, o governo planeja elevar os investimentos em estoques reguladores estratégicos de grãos. Braz reconhece que o mecanismo é caro e de gestão complexa, mas avalia ser uma ferramenta eficiente para o país se defender da alta dos preços, seja por fatores externos ou domésticos.
"Os desafios de hoje são desafios climáticos mais frequentes, o que significa que os problemas de safra vão se repetir com mais frequência. Como a gente deve se preparar para eles? Enquanto a tecnologia não nos garante grãos que sobrevivam à inundação e à seca extrema, a gente vai precisar dar um jeito", diz. A maior recorrência de secas extremas tem afetado as pastagens e levado os pecuaristas a aumentar as importações de milho e trigo para compensar, por exemplo - com impactos em toda a cadeia. "As pessoas não vão poder morrer de fome por isso. Não se fala muito bem de estoque regulador, mas eu penso mais nas pessoas do que no capital."
Baccarin prefere uma atuação do Estado mais direta sobre os preços, num contexto em que a demanda internacional deve seguir em alta, sustentada pelo mercado asiático. O aumento do consumo de café na Ásia, por exemplo, é um dos principais fatores que explicam a disparada mundial dos preços do café - no Brasil, um dos maiores produtores e exportadores, o valor subiu 77% em 12 meses, conforme o IPCA, que mede a inflação oficial do país.
"Deveríamos ter algum mecanismo interno para não repassar os aumentos momentos no exterior para o mercado interno. Um imposto de exportação em momentos de pico de preços funcionaria melhor", analisa o professor da Unesp. "Em segundo lugar, tornar mais competitiva a produção daqueles produtos que não são comercializáveis: ter um direcionamento maior da política agrícola para os produtos sem mercado internacional considerável", sugere.
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