Thomas Ostermeier discute 'verdade' como ruptura em tragédia de Ibsen no Festival de Avignon
Toda verdade deve ser dita, ou às vezes precisamos mentir para sobreviver? O questionamento filosófico, proposto pelo autor norueguês Henrik Ibsen na peça O Pato Selvagem (1885), ganha uma trama deliciosamente ambígua e insidiosa na encenação contemporânea do diretor alemão Thomas Ostermeier, à frente desde 1999 da prestigiosa Schaubühne de Berlim, instituição famosa por seu teatro político e engajado. A montagem estreou no sábado (5) na mostra oficial do Festival de Avignon, no sul da França.
No cenário teatral contemporâneo, raros são os diretores que conseguem atualizar o olhar sobre os grandes clássicos com tanta relevância quanto Thomas Ostermeier. Diretor artístico da Schaubühne, não é a primeira vez que esse alemão engajado recorre à obra de Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês do século 19, para extrair questionamentos profundamente atuais. O mergulho feito em Casa de Bonecas (2002), Os Fantasmas (2011) e O Inimigo do Povo (2012), encontra eco na montagem de O Pato Selvagem (2025), um texto que marca a transição de Ibsen para um teatro mais intimista e simbolista.
Mas mais do que uma simples homenagem ao dramaturgo, Ostermeier usa Ibsen como um prisma para dissecar alguns dos ditos desafios contemporâneos: a transparência diante da mentira, a fragilidade das estruturas familiares, o peso dos segredos e do silêncio "confortável" . Suas encenações de Casa de Bonecas e Os Fantasmas já seguiam essa linha essa linha, explorando a condição humana e as relações de poder com sensibilidade apurada, sustentada por um olhar de açougueiro heavy metal, longe de qualquer condescendência, seja com o texto, seja com a plateia.
Metallica e Iron Maiden
E é com heavy metal que Ostermeier atualiza em Avignon sua versão deste texto do século 19. Ao som de bandas como Metallica e Iron Maiden se embala Hjalmar Ekdal, personagem central do drama de Henrik Ibsen em O Pato Selvagem, nesta versão do diretor alemão. Interpretado magistralmente por Thomas Bading, Hjalmar representa o homem comum, medíocre, mas profundamente humano, cuja vida se sustenta sobre um frágil equilíbrio de ilusões e sonhos fracassados. Ao dedilhar sua guitarra dissonante para a plateia, como num show fictício de metal, Bading rompe a quarta parede num delicioso interstício com o público. Afinal, como não se emocionar diante da nossa própria degradação humana?
Fotógrafo amador e pai de família, Hjalmar é retratado como um personagem ao mesmo tempo carinhoso e patético. Sua dificuldade em lidar com a verdade ? especialmente sobre a paternidade de Hedvig ? e sua resistência em abandonar as ilusões que sustentam sua família o transformam numa figura essencialmente trágica.
Lucidez e espanto
Na cena proposta por Ostermeier, a presença desse pai cheio de fragilidades é contrabalançada pela jovem Hedvig ? espécie de "pato selvagem simbólico" da montagem, eixo central de lucidez e espanto ?, atualizada para a versão de 2025 como uma feminista com consciência de classe social. Criadora do jornal da escola e aspirante a jornalista (em busca da "verdade"?), ela carrega consigo uma estranha doença degenerativa nos olhos. Desde o adivinho cego e sábio das tragédias de Ésquilo, os gregos parecem continuar a habitar, como subtexto, os tablados contemporâneos.
O diretor alemão transporta com inteligência a obra de Ibsen para um cenário simples, mas carregado de significado, onde a cenografia giratória ? criada por Magda Willi [dispositivo já utilizado em outras peças do mesmo diretor, como Vernon Subutex I, de 2023) ? simboliza a fragilidade das relações humanas e a troca constante de máscaras que todos usam. No centro dessa engrenagem, Gregers Werle assume o papel de um "missionário da verdade", decidido a destruir as ilusões para "libertar" uma família que sobrevive sustentada por mentiras necessárias.
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Armadilha
Mas se na primeira parte do espetáculo, Ostermeier (ao lado da dramaturga Maja Zade) parece nos embalar numa espécie de realismo contemporâneo bem construído ? porém quase entediante ?, é na segunda metade da peça que a plateia percebe a armadilha. Sem transição, o ator Alexander Khuon, no papel do intransigente e idealista Werle, pega o microfone e decide perguntar ao público quem já mentiu para seu (sua) parceiro (a) ? e se a mentira foi "confortável". Afinal, quem nunca?
Em sua versão de O Pato Selvagem, a fragilidade das estruturas sociais e familiares também fica evidente, abaladas pela busca obsessiva por um ideal moral. Ostermeier lembra que a verdade nunca é neutra e que sua força pode ser tão destrutiva quanto as mentiras que tenta substituir. Ele retoma aqui uma reflexão iniciada em 2012 com Um Inimigo do Povo, também de Ibsen. Mas aqui, o político se torna íntimo: a guerra entre verdade e mentira acontece nos quartos, nos silêncios, nos gestos.
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Na releitura de O Pato Selvagem por Thomas Ostermeier, o personagem Gregers Werle ganha também uma dimensão especialmente contemporânea e inquietante. Interpretado por Khuon, Gregers não é apenas o agente que perturba o drama familiar: ele representa a ideologia moderna da "sinceridade absoluta", em sua forma mais intransigente ? e mais perigosa. Sob a direção de Ostermeier, o fanatismo moral é evidenciado com uma frieza intensa. Gregers não age realmente movido por compaixão, mas por uma lógica quase religiosa: a verdade como absoluto, a mentira como "pecado".
Finalmente, a encenação do diretor alemão explora com cuidado o paradoxo central da obra de Ibsen: a verdade é sempre algo positivo? O espetáculo de Ostermeier mostra como essa busca por uma honestidade absoluta pode se transformar em uma espécie de veneno, rompendo vínculos e causando danos irreversíveis. A questão parece ressoar e ganhar ainda mais força em uma era hiperconectada, em que transparência e confissão são frequentemente tratadas como virtudes incontestáveis, principalmente em redes sociais.
Mas Ostermeier reserva para o final seu buquê de estupefação, com uma cena giratória de horrores quase cinematográfica que levou a plateia da Ópera de Avignon ao delírio no sábado (5). Sem perder um grama de teatralidade, o diretor transpõe para o palco a voracidade dessa 'verdade absoluta', convocando o público a encarar uma vitrine trágica de horrores, ao som de heavy metal que embala o espanto e o terror humanos, sem redenção. "Humano, demasiado humano", diria seu "colega" alemão.
O Pato Selvagem fica em cartaz no Festival de Avignon até o dia 16 de julho.
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