Opinião: A doutrina Trump para a Europa é como uma música de Justin Bieber

Ivan Krastev*

Em Sófia (Bulgária)

  • Jonathan Ernst/Reuters

A nova política externa americana parece dizer "dane-se" aos aliados

Parece que, não importa o que aconteça na política americana, o pensador francês do século 19 Alexis de Tocqueville sempre tem algo a dizer a respeito. Em seu clássico "Democracia na América", ele sugeria que a política democrática precisava de drama; com a aproximação de uma eleição, "as intrigas se tornam mais ativas, e a agitação se torna mais viva e difundida. A nação inteira entra em um estado febril". Mas, uma vez passada a eleição, "tudo se acalma, e o rio, que por um momento transbordou, retorna pacificamente ao seu leito."

Podemos todos concordar que a primeira parte descreve exatamente o que aconteceu em 2016, uma vez que, independentemente do que pensemos sobre essa eleição específica, foi meramente uma versão hiperbólica do processo democrático costumeiro. Durante um período eleitoral, os candidatos enquadram o normal como catastrófico enquanto prometem que todas as calamidades podem de alguma forma serem superadas. A política democrática pode ser interpretada como uma sessão de terapia em nível nacional na qual os eleitores precisam enfrentar seus piores pesadelos —o colapso da democracia, derrocada econômica, desastre ambiental, uma nova guerra— mas estão convictos de que eles têm o poder de evitar o desastre.

Quando terminam as eleições, o mundo retorna magicamente ao status quo. E ainda que não volte, as pessoas farão o possível para acreditar que sim. Passado o choque inicial da vitória de Donald J. Trump, tanto amigos quanto inimigos minimizaram a importância do que aconteceu. As mesmas pessoas que caracterizaram a vitória de Trump como apocalíptica acabaram vendo-a como algo normal.

O risco é que dessa vez não voltemos ao normal. Independentemente das políticas que o presidente eleito adote, a vitória de Trump terá profundas repercussões políticas nos Estados Unidos e em outros países. É uma mudança de regime global. De fato, a queda do Muro de Berlim pode ser uma analogia útil para o momento atual. O dia 9 de novembro de 2016 poderia ser tão significativo quanto o 9 de novembro de 1989. E no sentido do pânico e da desorientação, as elites liberais de agora não estão muito diferentes das elites comunistas de então.

A importância da vitória de Trump vai muito além da derrota de Hillary Clinton. Trump enterrou a narrativa liberal do que aconteceu após a Guerra Fria. Um período que até ontem era saudado como a libertação dos povos agora é entendido como a libertação das elites, e o desencadeamento de forças mundiais caóticas que somente um tirano americano poderia conter. Ainda que os eleitores de Trump se desiludam com o presidente eleito e suas políticas, sua rejeição não inspirará uma volta à retórica ou às políticas dos anos 1990.

Da mesma forma que os esforços de Mikhail Gorbachev para reformar o sistema comunista subverteram as hipóteses sobre as quais seu sistema era baseado, a vitória de Trump torna ininteligível hoje o que era senso comum até ontem. E quem estará disposto a alegar que a globalização ainda é sinônimo de liberdade e prosperidade para todos e que a democracia significa respeito pelos direitos das minorias quando os americanos —na visão do mundo, os maiores beneficiários da globalização e os tradicionais defensores dos direitos humanos— votaram inequivocamente na ideia de que o sistema está falido?

A vitória de Trump também é uma poderosa afirmação de que o antipopulismo, a tentativa das elites de explorar as ansiedades do povo em relação a uma realidade inspirada em um populismo imprevisível e imprudente, não é mais a forma de se vencer uma eleição. Na verdade, a palavra "elite" hoje pode ser o maior dos palavrões no vocabulário popular.

Sua vitória deixa claro que estamos vivendo um momento em que o medo de um futuro incerto é uma força mobilizadora mais fraca do que o desgosto com o presente. Ela sinaliza que as maiorias ameaçadas emergiram como uma grande força na política democrática ocidental. Essas maiorias temem que os estrangeiros estejam tomando conta de seus países e ameaçando seu modo de vida, e estão convencidas de que a crise atual foi causada por uma conspiração entre elites de mentalidade cosmopolita e imigrantes de mentalidade tribal.

O efeito Trump será sentido de formas diferentes pelo mundo, mas seu impacto poderá ser maior na Europa. A vitória de Trump não somente encoraja os líderes e partidos populistas da Europa, como também coloca em dúvida o futuro da União Europeia. Desde a Segunda Guerra Mundial, no que diz respeito à segurança, a Europa tem sido protetorado dos Estados Unidos, o que agora não parece mais ser o caso.

Em 1989, Gorbachev anunciou sua Doutrina Sinatra, a ideia de que todos os países no bloco soviético poderiam seguir sozinhos e de que Moscou se absteria de intervir. Ao longo de sua campanha, Trump foi irritantemente vago a respeito de políticas concretas, mas ele sugeriu o que eu posso chamar de "Doutrina Bieber", de que os Estados Unidos não veriam mais os problemas de segurança de seus aliados como seus. "E se você pensa que ainda estou apegado a algo", canta Justin Bieber, "Você deveria se amar sozinha." [Nota da edição: "Você deveria ir se danar"]

"Se amar sozinho" é essencialmente a mensagem de Trump para seus aliados europeus. A preservação da União Europeia não é mais a prioridade ou o objetivo da política externa americana.

Além disso, a ironia do efeito de Trump sobre a política global é o fato de que sua vitória liberou o mundo da necessidade de se amar, invejar ou odiar os Estados Unidos. Foi o presidente Obama quem ousou sugerir que os Estados Unidos não eram excepcionais, mas foi a eleição de Trump que convenceu o mundo de que a democracia americana não era diferente de qualquer outra. Ela também pode ser caótica e perigosa.

Há relatos de que o presidente russo, Vladimir Putin, instruiu seu ministro da Defesa, Sergei K. Shoigu, de que se ele quisesse entender como os Estados Unidos funcionavam, a única coisa que ele precisaria fazer era assistir à série do Netflix "House of Cards". O presidente eleito americano provavelmente concordaria. O que significa, talvez, que De Tocqueville não seja mais uma leitura obrigatória para entender a política americana. Em vez disso, simplesmente veja Frank Underwood.

*Ivan Krastev é presidente do Centro de Estratégias Liberais, membro permanente do Instituto de Ciências Humanas em Viena e articulista convidado

Veja trailer da 4ª temporada de "House of Cards"

Tradutor: UOL

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