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Controle de pensamento: como China isola minorias e faz doutrinação forçada

China admite que "extremistas religiosos" estão sendo mantidos em "centros de reeducação"  - BBC
China admite que "extremistas religiosos" estão sendo mantidos em "centros de reeducação" Imagem: BBC

James Leibold*

Em Melbourne (Austrália)

08/12/2018 04h01

A China construiu uma vasta rede de campos de internação extrajudicial na região ocidental de Xinjiang, onde os uigures e outras minorias muçulmanas são obrigados a renunciar a sua cultura e religião e são submetidos à doutrinação política forçada.

Depois de negar durante muito tempo a existência desses campos, o governo chinês hoje os chama de centros de treinamento benignos, que ensinam lei, mandarim e técnicas vocais, afirmação que foi denunciada como um eufemismo grosseiro e uma tentativa de evitar críticas pelos graves abusos aos direitos humanos.

Mas os campos, especialmente sua ambição de reprogramar as pessoas, revelam uma lógica familiar que há muito define a relação entre o Estado chinês e seu público: uma abordagem paternalista que considera doença o pensamento e o comportamento diferentes e depois tenta modificá-los à força. A escala e o ritmo da campanha do governo em Xinjiang hoje podem ser extraordinários, mas a prática e seus métodos não o são.

Já no século 3º antes de Cristo, o filósofo Xunzi afirmou que a humanidade era como "pau torto" e que os defeitos de caráter de um indivíduo precisavam ser removidos ou corrigidos em nome da harmonia social. Mêncio, um pensador rival, acreditava na bondade inata dos seres humanos, mas também salientou a importância do autoaperfeiçoamento.

Em duro contraste com o liberalismo ocidental, o confucionismo e a cultura chinesa de modo mais amplo não se baseiam nos direitos individuais, mas na aceitação da hierarquia social e na crença de que os humanos podem ser aperfeiçoados. No pensamento chinês, os humanos não são dotados igualmente; eles variam em "suzhi", ou "qualidade". Um pobre agricultor uigur no sul de Xinjiang, por exemplo, está no fundo da escala evolucionária; uma autoridade da etnia majoritária han está perto do topo.

Mas os indivíduos são maleáveis, e se o suzhi é parcialmente inato também é produto do ambiente físico e da criação de uma pessoa. Assim como o ambiente errado por ser corruptor, o certo pode ser transformador. Daí a importância de seguir a orientação de pessoas consideradas dotadas de suzhi superior, que Confúcio chamava de "pessoas superiores" e os comunistas hoje chamam de "funcionários líderes".

Assim, até uma agricultora uigur pode aperfeiçoar seu suzhi, por meio de estudos, treinamento, condicionamento físico ou, talvez, migração. E é responsabilidade moral de um governo esclarecido e benevolente ajudar ativamente seus súditos a melhorar ou, como diz a acadêmica chinesa Delia Lin, reformular "pessoas originalmente defeituosas em cidadãos totalmente desenvolvidos, competentes e responsáveis". Durante suas sete décadas no poder, o Partido Comunista Chinês (PCCh) tentou repetidamente moldar estudantes recalcitrantes, adversários políticos, prostitutas e camponeses, da mesma forma.

Durante os muitos séculos da China imperial, a família era a incubadora da ordem social, com os pais conduzindo seus filhos e os maridos, as mulheres, segundo um rígido conjunto de rituais. Se a família estivesse em harmonia, toda a comunidade também estaria. Por outro lado, qualquer erro podia ser punido com surras, servidão, exílio ou morte por estrangulamento, decapitação ou dilaceração.

Hoje, a lógica transformadora do "ganhua", a reforma dos traços de personalidade negativos através de exemplos de superioridade moral, sustenta o sistema educacional da China, a teoria do encarceramento e até o trabalho da Frente Unida, a sombria máquina de influência do PCCh, cujos agentes tentam atrair ou convocam chineses que não são membros do partido ou vivem no exterior.

Por exemplo, os detentos muitas vezes são isolados quando chegam à prisão e depois são gradualmente reintegrados ao grupo. Eles são lentamente coagidos a obedecer aos funcionários da prisão, a "chefes de cela" prepotentes e a prisioneiros reformados. Várias táticas são usadas com esse fim, tanto induções (mais comida, sono ou contato humano) como punições (privação, tortura, isolamento). A experiência da vergonha, culpa, remorso e confissão deveria produzir a conversão e a renovação dos prisioneiros. Esse processo é intencionalmente destrutivo: segundo explicou o filósofo contemporâneo Tu Weiming, é uma jornada necessária de "dor e sofrimento" na busca pelo aperfeiçoamento humano.

Na teoria, a dureza do processo deveria ser temperada pelo desejo voluntário de se aperfeiçoar e pela expressão de empatia para com as pessoas que não o conseguem. Mas os membros do partido, em sua busca do autoritarismo, deixam de lado esses fatores atenuantes. Seus esforços de modificação contaram principalmente com a coerção, mais que a persuasão moral, e seus métodos frequentemente impiedosos mataram dezenas de milhões de chineses ao longo dos anos.

Muitas das pessoas que o PCCh tentou reformar foram submetidas a "sanção administrativa", em vez dos processos criminais, e colocadas em campos onde passaram pela "reeducação pelo trabalho" ("laojiao"). O sistema "laojiao" foi formalmente abolido em 2013, depois de ser criticado por violar os direitos individuais, mas a reeducação continua, não apenas em Xinjiang, sob o disfarce de educação ou tutelagem legal e moral compulsória. Pessoas comuns ou famosas podem ser submetidos a ela, muitas vezes contra sua vontade e sem recurso legal.

Em 2014, o ator Huang Haibo passou por seis meses de "custódia e educação" depois que solicitou uma prostituta. A estrela de cinema Fan Bingbing desapareceu durante vários meses neste ano, e depois confessou publicamente que tinha cometido fraude fiscal e elogiou o PCCh.

É uma iniciativa comunitária, também. Em nome da "revitalização rural", autoridades do partido na província de Heilongjiang, no nordeste, estão pedindo a "padronização do pensamento e comportamento dos agricultores". O programa é só uma parte de um plano de ação nacional, de três anos, do Comitê Central do partido para "aumentar o 'suzhi' ideológico e moral dos agricultores chineses com o fim de revitalizar e revisar seu caráter simples e honesto".

Quando aplicado em Xinjiang, no Tibete ou outras regiões de fronteira, o "ganhua" parece significar um "projeto civilizatório", como disse o antropólogo Stevan Harrell, que visa criar uma população uniforme sob a bandeira de uma única "nação chinesa". Mas é mais que isso. Nos anos 1960, o psiquiatra Robert Jay Lifton chamou o controle do pensamento no estilo chinês, com sua crença dogmática na verdade absoluta e compulsão por corrigir o incorrigível, de "totalitarismo ideológico".

Como notou Lifton, o totalitarismo ideológico na China não é um processo contínuo, mas um fenômeno cíclico. Ele provoca uma mistura de emoções. Alguns sujeitos obedecem, outros recuam; alguns podem até se entusiasmar de início. Mas com o tempo a natureza sufocante da repressão tende a gerar ressentimento e resistência, e estes por sua vez podem provocar métodos de controle ainda mais repressivos.

Durante a era maoísta, várias campanhas de reforma perderam o ímpeto conforme os detidos e seus supervisores sofriam fome e exaustão. Uma onda de repressão diminuía, mas outra surgia, com um alvo diferente: os chamados direitistas que foram libertados em 1959 por ordem de Mao foram rotulados de contrarrevolucionários e perseguidos alguns anos depois, durante a Revolução Cultural.

A partir dos anos 1980, a agenda de reforma econômica de Deng Xiaoping ajudou a devolver a sociedade chinesa a um rumo mais equilibrado e pragmático, pelo menos até a repressão em Tiananmen. Mas agora o presidente Xi Jinping parece estar intensificando a repressão novamente, contra minorias étnicas, intelectuais, advogados, cristãos, ativistas trabalhistas e até estudantes maoístas.

Mas o totalitarismo ideológico parece conter as sementes de sua própria destruição. Ele é caro. Incentiva abusos de poder por autoridades partidárias, que ganham recompensas por manter a estabilidade. Esses abusos minam o Estado de direito e a confiança social.

Com o tempo, o totalitarismo ideológico pode corroer a legitimidade do Estado. E "quando o público começa a perder a confiança no governo e deixa de se identificar com ele", escreveu o estudioso Yu Jianrong, "o pânico se instala e o completo caos social é desfechado".

É a insegurança fundamental do regime, o medo da rebelião e do eventual desmembramento da China, que o mergulha cada vez mais fundo na vida privada dos cidadãos, alienando-os. A repressão dos uigures em Xinjiang é apenas a manifestação extrema da virulenta e insustentável busca do PCCh pelo controle total.

*James Leibold é professor-associado de política e estudos asiáticos na Universidade La Trobe, em Melbourne.