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Bits e barbarismo

Paul Krugman

24/12/2013 00h01

Esta é uma história de três buracos sem fundo. Também é uma história de retrocesso monetário –da estanha determinação de muitas pessoas em reverter séculos de progresso.

O primeiro buraco sem fundo é um buraco de fato –a mina de ouro a céu aberto de Porgera, em Papua-Nova Guiné, uma das maiores produtoras do mundo. A mina tem uma reputação terrível tanto de abusos de direitos humanos (estupros, espancamentos e assassinatos cometidos por seguranças) quanto de danos ambientais (vastas quantidades de refugos potencialmente tóxicos despejados em um rio próximo). Mas os  preços do ouro, apesar de abaixo do pico recente, ainda estão três vezes acima do que há uma década, de modo que continuam cavando.

O segundo buraco sem fundo é muito mais estranho: a mina de bitcoin em Reykjanesbaer, Islândia. Bitcoin é uma moeda digital que tem valor porque... bem, é difícil dizer exatamente por que, mas por ora há pessoas dispostas a comprá-la porque acreditam que outras pessoas estarão dispostas a comprá-la. É, por projeto, uma espécie de ouro virtual. E como ouro, ele pode ser minerado: você pode criar novas bitcoins, mas apenas por meio da solução de problemas matemáticos muito complexos que exigem muito poder de computação e muita eletricidade para rodar os computadores.

Daí a localização na Islândia, que tem eletricidade barata de hidrelétricas e uma abundância de ar frio para refrigerar aquelas máquinas que funcionam furiosamente. Mesmo assim, muitos recursos reais estão sendo usados para criação de objetos virtuais sem uso claro.

O terceiro buraco sem fundo é hipotético. Em 1936, o economista John Maynard Keynes argumentou que o aumento de gastos pelo governo era necessário para restaurar o pleno emprego. Mas naquela época, como agora, havia forte resistência política a essa proposta. Então Keynes sugeriu caprichosamente uma alternativa: que o governo enterrasse garrafas cheias de dinheiro em minas de carvão desativadas e permitisse ao setor privado gastar seu próprio dinheiro para escavar o dinheiro. Segundo ele, seria melhor o governo construir estradas, portos e outras coisas úteis –mas até mesmo um gasto totalmente inútil daria à economia o estímulo necessário.

Inteligente –mas Keynes ainda não tinha concluído. Ele apontou que a atividade de mineração de ouro na vida real era muito parecida com seu experimento imaginário. Afinal, os mineiros de ouro não mediam esforços para extrair dinheiro do solo, apesar da possibilidade de quantidades ilimitadas de dinheiro poderem ser criadas a basicamente nenhum custo nas máquinas impressoras. E tão logo o ouro era desenterrado, grande parte dele voltava a ser enterrado de novo, em locais como o cofre de ouro do Federal Reserve Bank de Nova York, onde se encontravam centenas de milhares de barras de ouros, não fazendo nada em particular.

Eu acho que Keynes teria achado graça ao saber quão pouco mudou nas últimas três gerações. Gastos públicos para combater o desemprego ainda são anátema; mineradores ainda estragam a paisagem para aumentar o acúmulo de ouro inerte. (Keynes apelidou o padrão ouro de "relíquia bárbara".) A bitcoin apenas se soma à piada. Afinal, o ouro ao menos tem alguns usos reais, com em obturações dentárias; mas agora nós estamos queimando recursos para criar "ouro virtual", que não consiste de nada, apenas de uma série de dígitos.

Mas eu suspeito que Adam Smith teria ficado consternado.

Smith costuma ser tratado como um santo padroeiro dos conservadores e ele de fato fez a defesa original do livre mercado. Mas é mencionado com menos frequência que ele também defendia fortemente a regulação bancária –e que ele fazia uma ode clássica às virtudes do papel moeda. O dinheiro, ele entendia, era uma forma de facilitar o comércio, não uma fonte de prosperidade nacional –e o papel moeda, ele argumentava, permitia ao comércio seguir em frente sem ficar atado demais à riqueza de uma nação em um "estoque morto" de prata e ouro.

Então por que estamos arruinando as terras altas de Papua-Nova Guiné para aumentar nosso estoque morto de ouro e, ainda mais bizarramente, rodando computadores poderosos 24 horas, 7 dias por semana, para aumentar um estoque morto de dígitos.

Fale com os interessados pelo ouro e eles dirão que o papel moeda vem dos governos, nos quais não se pode confiar que não desvalorizarão suas moedas. Mas o estranho é que apesar de toda essa conversa de desvalorização da moeda, é muito difícil encontrar essa desvalorização. Mesmo após anos de alertas sombrios sobre inflação descontrolada, a inflação nos países industrializados está claramente baixa, não alta. Mesmo de um ponto de vista global, os episódios de inflação realmente alta se tornaram raros. Mesmo assim, o medo da hiperinflação parece brotar eternamente.

O apelo da bitcoin parece vir mais ou menos das mesmas fontes, além do senso adicional de que é de alta tecnologia e algorítmica, de modo que deve ser a onda do futuro.

Mas não se deixe enganar: o que está realmente acontecendo é uma marcha determinada aos dias em que o dinheiro significava coisas que você podia chocalhar em sua bolsa. Tanto nos trópicos quanto na tundra, nós estamos de alguma forma escavando uma volta ao século 17.