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Projeto europeu de democracia e prosperidade está em apuros

Paul Krugman

24/05/2014 00h03

Há um século, a Europa despedaçou a si mesma no que foi conhecida, por algum tempo, como a Grande Guerra –quatro anos de morte e destruição em uma escala sem precedente. Posteriormente, é claro, o conflito foi rebatizado de Primeira Guerra Mundial –porque, um quarto de século depois, a Europa fez isso novamente.

Mas isso foi muito tempo atrás. É difícil imaginar uma guerra na Europa atual, que coalesceu em torno de valores democráticos e até mesmo deu seus primeiros passos na direção de uma união política. De fato, enquanto escrevo isto, eleições estão ocorrendo por toda a Europa, não para escolha de governos nacionais, mas para seleção de membros do Parlamento Europeu. Sim, o Parlamento tem poderes bem limitados, mas sua mera existência é um triunfo da ideia europeia.

Mas aqui está o problema: a expectativa é de que uma fração alarmantemente alta dos votos vá para extremistas de direita, hostis aos próprios valores que tornaram a eleição possível. Vamos colocar desta forma: alguns dos maiores vencedores na eleição da Europa provavelmente serão pessoas que estão do lado de Vladimir Putin na crise na Ucrânia.

A verdade é que o projeto europeu –paz garantida por democracia e prosperidade– está em apuros; o continente ainda tem paz, mas está devendo em prosperidade e, de modo mais sutil, em democracia. E, se a Europa tropeçar, será algo muito ruim não apenas para a própria Europa, mas para o mundo como um todo.

Por que a Europa está em apuros?

O problema imediato é o desempenho econômico ruim. O euro, a moeda comum europeia, supostamente seria o passo culminante na integração econômica do continente. Em vez disso, ele se transformou em uma armadilha. Primeiro, ele criou uma complacência perigosa, à medida que investidores canalizaram imensas quantidades de dinheiro para o sul da Europa, negligenciando os riscos. Então, quando a bolha estourou, os países devedores se viram acorrentados, incapazes de recuperar a competitividade perdida sem anos de desemprego em escala de depressão.

Os problemas inerentes do euro se agravaram com políticas ruins. Os líderes europeus insistiram e continuam insistindo, mesmo diante das evidências, que a crise se tratava apenas de irresponsabilidade fiscal, impondo uma austeridade selvagem que tornou uma situação terrível ainda pior.

A boa notícia, mais ou menos, é que apesar de todos esses erros, o euro resistiu, surpreendendo muitos analistas –eu entre eles– que achavam que ele entraria em colapso. Por que essa resistência? Parte da resposta é que o Banco Central Europeu acalmou os mercados ao prometer fazer "tudo o que for necessário" para salvar o euro, até mesmo comprar títulos dos governos para impedir que as taxas de juros subissem demais. Além disso, entretanto, a elite europeia permanece profundamente comprometida com o projeto e, até o momento, nenhum governo se mostrou disposto a romper fileiras.

Mas o preço dessa coesão da elite é uma crescente distância entre os governos e os governados. Ao cerrar fileiras, a elite na prática assegurou que não haja vozes moderadas discordando das políticas ortodoxas. E esta falta de dissensão moderada empoderou grupos como a Frente Nacional na França, cujo principal candidato ao Parlamento Europeu condena uma "elite tecnocrata servindo à oligarquia financeira americana e europeia".

A ironia amarga aqui é que a elite europeia não é tecnocrata. A criação do euro envolveu política e ideologia, mas não foi uma resposta a uma análise econômica cuidadosa (que sugeria desde o início que a Europa não estava pronta para uma moeda única). O mesmo pode ser dito da adoção da austeridade. Toda a pesquisa econômica supostamente justificando essa opção foi desacreditada, mas as políticas não mudaram.

E o hábito da elite europeia de disfarçar ideologia de perícia, de fingir que o que deseja fazer é o que deve ser feito, criou um déficit de legitimidade. A influência da elite se apoia na presunção de perícia superior; quando essas alegações de perícia provam ser vazias, não resta nada em que se apoiar.

Até o momento, como eu disse, a elite foi capaz de manter tudo unido. Mas nós não sabemos por quanto tempo isso durará, e há algumas pessoas muito assustadoras à espreita.

Se tivermos sorte –e se as autoridades do Banco Central Europeu, que são mais próximos de tecnocratas genuínos do que o restante da elite, agirem com audácia suficiente contra a crescente ameaça de deflação– nós poderemos ver alguma recuperação econômica real nos próximos anos. Isso poderia, por sua vez, oferecer um espaço para recuperação do fôlego, uma chance de recolocar o projeto europeu como um todo nos trilhos.

Mas a recuperação econômica por si só não basta. A elite europeia precisa se lembrar do que o projeto realmente se trata. É assustador ver tantos europeus rejeitando valores democráticos, mas ao menos parte da culpa é de autoridades que parecem mais interessadas na estabilidade dos preços e na probidade fiscal do que na democracia. A Europa moderna é construída com base em uma ideia nobre, mas essa ideia precisa de mais defensores.