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Risos contra o terror: uma disputa desigual

Capa da edição desta quarta-feira (14) da Charlie Hebdo, a primeira depois de 12 pessoas serem mortas em um atentado terrorista - Reprodução/Twitter/@libe
Capa da edição desta quarta-feira (14) da Charlie Hebdo, a primeira depois de 12 pessoas serem mortas em um atentado terrorista Imagem: Reprodução/Twitter/@libe

Robert Darnton

13/01/2015 06h01

Uma das muitas charges publicadas em homenagem aos cartunistas e jornalistas assassinados na quarta-feira (7), na sede no "Charlie Hebdo", mostrava uma lápide com a inscrição "Morreu de Rir". Ninguém está rindo atualmente em Paris. Na verdade, o massacre levanta questões sobre o próprio riso.

São de muitos tipos as variedades francesas, da gargalhada rabelaisiana ao sorriso malicioso voltairiano. O "Charlie Hebdo" se especializou em piadas escancaradas e atirando para todo lado, repletas de sexo e mau gosto explícito.

De algumas formas, parecia um humor datado. Fundado nos anos 70, ele expressava o escárnio esquerdista da rebelião de maio-junho de 1968. O "Charlie" de quem zombava era Charles de Gaulle, apesar de alguns também virem um pouco de Charlie Brown na sátira. Vários de seus cartunistas famosos –Georges Wolinski, Jean Cabut, Philippe Honoré– eram da geração de 68, agora septuagenários que nunca pararam de fazer careta para os grandes e poderosos, até serem mortos a tiros na reunião semanal de pauta em 7 de janeiro.

Como historiador da sátira francesa, eu lembrei escritores que voltaram sua sagacidade contra o poder e a intolerância: Rabelais, Bussy-Rabutin, Beaumarchais, Chamfort ... e acima de todos, Voltaire. A sátira ultrajante floresceu já nos anos 1640, quando Paul Scarron ridicularizou o ministro chefe de Luís 14, o cardeal Mazarino.

"Nós temos que atrair o riso para o nosso lado", escreveu Voltaire, enquanto tentava mobilizar seus companheiros filósofos na campanha contra a perseguição pela Igreja.

Não havia nada de voltairiano no humor do "Charlie Hebdo", mas seu escárnio da ortodoxia religiosa, tanto cristã quanto islâmica, expressava um espírito anticlerical que remonta há muito tempo na história francesa. Enquanto digeria a notícia do massacre, eu continuava pensando em Voltaire e em seu sorriso famoso –com lábios curvados e maxilar inferior projetado, como se desafiando alguém a ousar dar um soco.

Nem sempre foi uma defesa adequada. Em seus últimos anos, Voltaire foi tomado por horror diante das atrocidades cometidas pelos tribunais franceses, particularmente o caso de Jean Calas, um protestante que foi torturado e executado após ser erroneamente condenado pelo suicídio de seu filho, que tinha se convertido ao catolicismo. O Caso Calas se tornou o elemento central na campanha de Voltaire para esmagar "l'infâme" –a intolerância, ignorância, injustiça e, especialmente, a perseguição perpetrada pela Igreja e pelo Estado. No auge de sua fúria, se me recordo corretamente, Voltaire escreveu uma carta a d'Alembert, seu principal aliado filosófico em Paris, declarando, "Este não é um momento para risos".

Risos contra o terror: uma disputa desigual

Um dia após o massacre, eu perguntei ao jornaleiro perto do meu apartamento em Paris quando ele vendeu sua última edição do "Charlie Hebdo". "Uma hora depois do evento", ele disse. Ele nunca manteve muitos exemplares em sua banca: "Ele tinha um tipo peculiar de leitor". A publicação sobreviverá? "É claro", respondeu. "Caso contrário, eles terão vencido." De fato, os sobreviventes na redação já preparam a edição da próxima quarta-feira em uma redação emprestada pelo "Libération". A tiragem será de 1 milhão de exemplares.

Eu fiquei sabendo do massacre poucos minutos após ter ocorrido, quando estava sentado por acaso no escritório de um amigo, que é editor na Gallimard. Ele conhecia vários colaboradores do "Charlie Hebdo", assim como todos seus amigos. O mundo da palavra impressa em Paris é pequeno. Todo mundo nele conhece alguém que conhecia alguém que foi assassinado. Todo mundo está em estado de choque e sente a atrocidade pessoalmente, como se fosse um golpe no corpo –e também ao corpo político, um golpe contra a imprensa, contra a livre circulação de ideias, contra o direito de zombar. Um comentarista o descreveu como um "ataque contra o espírito francês".

Paris teve seus risos drenados nesta semana. Na semana que vem, as bancas estarão cheias de um ressuscitado "Charlie Hebdo", mas é difícil ver quando a comédia humana parecerá novamente divertida.