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Transformamos em causa a solução do problema da mobilidade

Especial para o UOL

04/04/2015 06h00

Um longo processo de evolução conferiu aos hominídeos a postura ereta e nos tornamos bípedes. Elevávamos o corpo e também o nosso espírito e inteligência. O desenvolvimento da córtex cerebral ao longo do tempo permitiu que nós, humanos, nos autodesignássemos como Homo sapiens.

A engenhosidade criou métodos para facilitar a locomoção do Homo sapiens. Dominamos as bestas, e delas fizemos instrumentos de montaria e tração. Ganhamos velocidade e encurtamos as distâncias ao nos transformarmos de bípedes eretos em quadrúpedes eventuais no lombo de nossas montarias.

Dominamos a força dos ventos para singrar os oceanos. Criamos bondes movidos a tração animal e controlamos a força do vapor para mover locomotivas e embarcações. Encurtamos as distâncias entre as nações, e mais pessoas puderam usufruir de métodos de transporte coletivo mais velozes.

A inteligência atendeu também anseios de individualidade, desenvolvendo um engenhoso instrumento de deslocamento individual, menos custoso e trabalhoso quando comparado com os animais.

Os seres humanos de então deram-lhe o nome de bicicleta, uma máquina que permitiu que os bípedes menos endinheirados a ponto de não poder pagar pela manutenção de um quadrúpede também pudessem ter um meio de transporte mais eficiente. Permitam-me então cunhar o termo birodúpede, ou seja, aquele que substituiu duas pernas por duas rodas para se locomover.

Avança o tempo e o engenho humano e cria-se um veículo motorizado de quatro rodas, chamada desde de então de automóvel. Analogamente, podemos criar a expressão quadrirodúpede. Durante décadas, quadrirodúpedes moviam-se mais rapidamente do que os birodúpedes, os quadrúpedes e os humanos bípedes. Estes novos sistemas de mobilidade proliferaram e, paradoxalmente, começaram a congestionar aquele espaço que lhes foi criado para se movimentarem, conhecidos como ruas, avenidas e estradas.

Pouco a pouco, os quadrirodúpedes foram perdendo a velocidade, sendo ultrapassados por quadrúpedes, birodúpedes e bípedes. Os humanos que optaram por se transformarem em quadrirodúpedes passaram a perder mais tempo de suas vidas presos na imobilidade dos espaços urbanos a eles destinados.

Dormiam menos para poder chegar aos seus trabalhos em tempo. Incorporaram uma dose crescente de inatividade física dentro das cabines de seus servos mecânicos. Passaram a se ofender mutuamente nos momentos que dois ou mais quadrirodúpedes disputavam o mesmo espaço nas ruas, avenidas ou estradas.

Ganharam com isso uma dose maior daquilo que a inteligência humana designou como estresse. Restava então estimular o compartilhamento dos motores por vários seres humanos – designado como transporte coletivo – dando-lhe mais espaço naquilo que convencionamos chamar de público.

Para aumentar a eficiência da mobilidade, foi pensado também em transformar alguns dos quadri em birodúpedes. Não houve, no entanto consenso, pois de tanto sermos quadrirodúpedes, atribuímos a deterioração da mobilidade urbana ao transporte coletivo e aos birodúpedes.

Ao transformarmos a solução do problema em sua causa nos tornamos um pouco menos Homo sapiens. Espero sinceramente que, novamente, a engenhosidade e a inteligência nos façam compreender melhor o cenário da imobilidade urbana que hoje enfrentamos em nossas cidades.

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