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É bobagem dizer que classe média é contra ascensão dos pobres

Especial para o UOL

26/04/2015 06h00

Não faltam interpretações sobre as manifestações de rua e a crise já quase permanente do petismo e do governo da presidente Dilma. Há quem diga que tudo não passa de um “terceiro turno”, do ressentimento de grupos que não aceitam ter perdido as eleições.

Há quem diga que é apenas a turma da direita, de traço golpista, que fez da saída da presidente seu programa político. E há quem vá além, como o líder do governo na Câmara, Deputado Sibá Machado, e suspeite de que a culpa é da CIA. Isso mesmo, são eles, os espiões de Barack Obama que andam por trás dessas coisas todas.

Dias atrás me deparei com uma interpretação, por assim dizer, mais sociológica, e intrigante. Ela surgiu na entrevista de um professor universitário ligado ao governo. Seu foco eram as mobilizações de rua contra a atual gestão.

Lá pelas tantas, ele resumiu o problema dizendo que a “classe média tradicional” não suportava a “ascensão social dos mais pobres”. Trata-se, segundo ele, de uma “rejeição ao povo brasileiro”. 

Já havia lido muita gente tentando explicar a oposição ao governo na linha do “ódio de classe”. Nesse caso, porém, as baterias não se voltavam contra “os ricos”, e sim contra a classe média. Por razões aritméticas, imagino. Seria difícil explicar o que faziam tantos endinheirados passeando com cartazes, pela avenida Paulista, nesses meses de março e abril. Sobrou para classe média “tradicional”, que parece ser a pior de todas.

O ponto do professor era o seguinte: as pessoas que foram para a rua dia 15 de março e, em menor número, no último dia 12 de abril, não o fizeram por indignação ética, por repulsa aos fatos da operação Lava Jato, pelo encolhimento do PIB ou pela quebra das promessas de campanha da presidente Dilma. Nada disso. Todas essas pessoas foram para a rua por não suportar que a pobreza tenha decrescido, no Brasil, nos últimos anos.

Confesso que a tese me surpreendeu. Por que cargas d’agua, me perguntei, a classe média consideraria insuportável que alguns milhões de brasileiros tenham cruzado a linha de pobreza?

Que mal poderia haver em tanta gente entrando no mercado de trabalho, comprando geladeira e telefone celular, indo para a escola, e alguns chegando até à faculdade? Fiquei sem resposta. Apenas considerei que, sendo esta interpretação verdadeira, teríamos uma classe média de fato “odiável”.

Tentei achar, sem sucesso, algum dado empírico sustentando sua interpretação. O autor da tese simplesmente “achava” que era isso, e ponto final. Tão pouco definia o que queria dizer com “classe média tradicional”. Talvez se referisse à “classe média alta”, mas achou que o termo não iria colar.

De novo, seria difícil explicar tanta gente de alta renda gritando pelas ruas. Talvez se referisse a pessoas que já são de classe média há mais tempo. Digamos que duas gerações para trás é “tradicional”, menos de duas gerações é “não tradicional”.

Imaginei o sujeito com uma “luneta sociológica”, bastava mirar, de longe, aquela massa de gente na avenida Paulista para os dados aparecem numa tela virtual.

Por óbvio ele tinha dado nenhum, era apenas um chute, mas me lembrei do filósofo Harry Frankfurt e sua definição de "bullshit": algo que você diz sem se preocupar se é verdade ou mentira, simplesmente quer causar um impacto e sai falando. Em bom português, a expressão significa "bobagem".

Do ponto de vista político, a tese funciona. Seu primeiro alvo é o militante fanatizado, disposto a acreditar em qualquer coisa. “Creio porque é absurdo”, diz a máxima da ideologia, emprestada à teologia de Tertuliano. O partido precisa dizer alguma coisa para seus próprios ativistas. E não faz sentido dizer: “pois é, pessoal, erramos”.

O tesoureiro da legenda (mais um) vai preso pela Polícia Federal, mas é preciso manter os punhos cerrados. E nada melhor do que por a culpa no “andar de cima” sempre que a coisa aperta. 

A tese funciona também ao usar o que se pode chamar de “truque da correlação”. Os pobres ficaram menos pobres e a classe média está zangada? É o mesmo caso da executiva bonita, que subiu na empresa pelo próprio mérito, fez MBA, bateu todas as metas, mas não tem dia que alguém não “explica” sua ascensão, perguntando, na hora do cafezinho, com uma piscada de olho: “por que você acha?”. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, é correlação sem casualidade, mas a ideia “cola”. E de quebra ajuda a desviar a atenção das razões que de fato importam.

Por fim, é um argumento que segrega, que divide o país entre quem pertence ou não ao “povo brasileiro”. E pior, um argumento que deslegitima qualquer possibilidade de oposição e que supõe que estar contra o governo sempre significará estar contra o “povo”. Espécie de gigantesco argumento ad hominem contra todo mundo que pensa diferente.

Nos anos 70, fazer oposição ao regime era estar contra o Brasil. O mote era “ame-o ou deixe-o”. Em um vídeo recente que circula na internet, o líder do MST, João Pedro Stédile, aparece na Venezuela dizendo, aos gritos, que a “direita” brasileira deveria fazer como a cubana, e “ir logo embora para Miami”.

O pensamento autoritário não pertence a essa ou àquela ideologia. É possível pensar que ele seja, em si mesmo, uma ideologia. Isso não é novidade, o que surpreende é seu espaço na academia brasileira.

De minha parte, procuro pensar que o país vive tempos novos. As pessoas vão às ruas por que percebem que valores muito caros a nossa República se perderam. Elas dispõem de informação abundante, e a tecnologia lhes deu o poder de falar e mobilizar, que antes pertencia essencialmente aos partidos, sindicatos e organizações estudantis. 

O poder se fragmentou, e o pêndulo da vida republicana parece ter oscilado na direção dos cidadãos. Compreender esse mundo exige, quem sabe, certa disposição para ouvir o que as pessoas tem a dizer, ao invés de ficar repetindo, obstinadamente, as mesmas palavras. 

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