"Nem a democracia nem a República estão consolidadas", diz Lilia Schwarcz
A polarização social e política não é exclusividade deste ano de 2016 no Brasil. Há 127 anos, em um 15 de novembro, a divergência entre monarquistas e republicanos levou à adoção do regime republicano, em substituição à enfraquecida monarquia de Dom Pedro 2º. Tratou-se de um golpe, como alguns vários vividos na história da República brasileira.
Em um ano marcado por um novo impeachment, o balanço do regime republicano apresenta um resultado ruim e digno de preocupação, de acordo com a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Em entrevista ao UOL, a especialista avalia que “a República vai mal no Brasil”, sobretudo pela manutenção de preconceitos e pela “ingerência perversa” do privado sobre o público.
“Estamos vivendo um momento particular no qual nem a democracia, nem a República, estão consolidadas. Longe disso”, disse Lilia em entrevista por telefone dos Estados Unidos, onde ela atua como professora visitante na Universidade de Princeton.
Ela é cautelosa também ao analisar não só o passado republicano, mas também o presente que vê a “República de Curitiba” como defensora do combate à corrupção por meio da Operação Lava Jato.
“Devemos tomar muito cuidado. A Lava Jato tem cumprido um papel importante, mas cabe a nós vigiar também. Eu discordo quando se pensa que República é delegar. A gente não pode delegar a Curitiba esse poder.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
UOL – O regime republicano no Brasil está completando 127 anos. Qual é a avaliação que a senhora faz deste período no país?
Lilia Moritz Schwarcz – Eu penso que não estamos nada bem na República. Agora vivenciamos um problema muito sério com a relação do equilíbrio dos nossos Poderes, estou me referindo às nossas agências do Executivo, Legislativo e Judiciário, com o Executivo mais fragilizado, um Legislativo mais desmoralizado pela corrupção, o Judiciário tem assumido uma força muito grande.
O problema é o Judiciário achar que tem essa capacidade missionária e isso acontece, porque os outros Poderes estão enfraquecidos, o terceiro assume uma posição proeminente no triângulo, em vez de um equilíbrio no triângulo. Essa é uma face frágil da nossa República.
A corrupção é um grande inimigo da República. Ela abala as instituições da República. Nós estamos correndo ainda para a corrupção parecer endêmica, mas ela não é. A corrupção é uma construção social, econômica e política, não tem nada a ver com o nosso sangue. É preciso combater a corrupção de todas as maneiras, sem um partido prévio, nesse sentido que eu digo.
A nossa República ainda sofre com racismos, haja visto que estamos matando uma geração de jovens negros. Acabou de acontecer uma chacina agora (em São Paulo). A nossa República vai mal quando nós usamos de forças públicas com razões privadas, não é possível fazer isso. A nossa República sofre com sexismos muito fortes, a gente acabou de ver uma erupção dessa discussão dessa cultura do estupro que não é à toa. Não me refiro só às mulheres, mas me refiro ao que fazemos com a população LGBTs, que é uma população imensa e muito variada e essa sigla nem mesmo representa exatamente o que é.
Enfim, acho que a nossa República, passado muito anos, ainda sofre muito. Se a linguagem da República é a linguagem da “Res pública” (expressão latina para “coisa do povo”, que deu origem ao termo "república"), eu acho que nós temos a ingerência do privado no público de uma maneira muito perversa.
Podemos afirmar que o regime republicano está plenamente consolidado no Brasil?
Até pouco tempo, até no livro (“Brasil: Uma Biografia") que escrevi com a Heloísa (Starling, historiadora) a gente dizia que é preciso escrever um outro capítulo agora. A gente dizia que a democracia estava consolidada e a República ia mal, porque as nossas instituições estavam fortes, as representações estavam fortes.
Como como eu disse, estamos vivendo um momento particular no qual nem a democracia, nem a República, estão consolidadas. Longe disso.
Hoje o termo dito republicano mais comum no país é o da “República de Curitiba”. Como a senhora interpreta esse entendimento dos princípios republicanos em associação com a Operação Lava Jato e o combate à corrupção?
Eu acho que isso tem a ver também com esse assoberbamento do Judiciário. Devemos tomar muito cuidado. A Lava Jato tem cumprido um papel importante, mas cabe a nós vigiar também. Eu discordo quando se pensa que República é delegar. A gente não pode delegar a Curitiba esse poder, com o perigo da Lava Jato, dos nossos representantes na Lava Jato, suporem que são mais republicanos do que os republicanos. Eles não são. Todos nós somos.
Quem delega perde o lugar e perde a República.
Acho que a nossa República nasce com um golpe e isso não quer dizer que você esteja dizendo que a República é melhor do que o Império ou o contrário. Foi um golpe dado por um setor do Exército aliado a um setor financeiro poderosíssimo, São Paulo, a gente não pode esquecer disso.
O PRP (Partido Republicano Paulista), que estava alijado do poder e que vê na oportunidade, no enfraquecimento da figura do imperador (Dom Pedro 2º), que ainda era muito forte mas que foi perdendo poder por conta do retardamento do final da escravidão, no crescimento da oposição e do abolicionismo, do republicanismo, vai ficando isolado no poder e toma um golpe mesmo.
Foi um golpe não popular, que demorou muito para se instalar, mas que construiu uma série de instituições representativas. A Primeira República foi o berço de uma série de instituições. Ela viveu um momento em que a luta política por direitos políticos e sociais estava na rua. Enfim, uma coisa é discutir o golpe e outra é discutir o que a Primeira República criou. Eu discordo do termo República Velha que foi o termo criado por Getúlio Vargas para se valorizar, e a Primeira República acabou vingando, produzindo uma comunidade que se imaginava politicamente e que lutava por direitos.
A senhora mencionou Getúlio Vargas, outro a alcançar a Presidência da República por meio de um golpe...
Novo golpe. Mas teve um golpe no Império também, não se pode esquecer isso. Foi o Golpe da Maioridade, como diz o nome, colocou o imperador-menino no poder (em 1840, aos 14 anos, Pedro 2º assume o trono com o apoio dos liberais para pôr fim aos nove anos do período regencial, marcado por muita instabilidade de diversas revoltas de Norte a Sul do Brasil).
Então não é privativa da República a linguagem do golpe.
Na sua opinião, o Brasil testemunhou um novo golpe em 2016?
Em primeiro momento não me pareceu, mas a votação do impeachment foi. Quer dizer, o processo de construção do impeachment não era exatamente um golpe porque a gente pode dizer que a Constituição não protege o ou a presidente, era algo que estava previsto lá, porém o ritual do impeachment e como ele se consolidou, e da maneira com que foi realizada, aí sim foi um golpe. A presidente não foi julgada na sua responsabilidade, esta foi a última coisa que estava sendo julgada.
Para deixar claro: a construção do processo está prevista na lei, essa não foi (golpe), mas o rito foi.
Não houve um embasamento, até hoje, que consolidasse a culpa da presidente. E veja no que está levando, como o governo Temer não consegue vingar. Há claramente um ‘gap’ (lacuna) na capacidade do Executivo em gerir o país.
Como a senhora avalia o novo governo? Pode ser qualificado como um defensor dos valores republicanos?
Penso que o presidente Temer venceu a partir da aliança e do jogo de negociação com certos setores e que agora ele tem que satisfazer e não tem como satisfazer. Nesse sentido que eu achei que a consolidação do impeachment foi a consolidação de um grupo que não estava muito preocupado com os interesses da República, da ‘Res pública’. Foi, de novo, um circo familiar, do privado, dos interesses do intimismo e não dos públicos.
Mas esse aspecto clientelista não é uma exclusividade da República, correto? Isso já era uma característica comum do Império...
Sou uma estudiosa do Sérgio Buarque de Hollanda, não que seja exatamente a mesma coisa porque ele mostrava que havia movimento, mas o que estamos experimentando no Brasil é um circuito do “familismo”, dos interesses do privado, do inflacionamento do privado e com todos os riscos que isso pode vir a acarretar. E dessa falsa palavra de ordem que o problema é não gerir o Estado como uma empresa. O Estado não é uma empresa. Como se essa mentalidade empresarial fosse sinônimo de apartidarismo ou uma outra coisa que não fosse uma gestão dos políticos, dos partidos, que é uma outra face do ‘Sem Escola’ (Escola sem Partido). Sem como? Sem está cheio. Sem é nada. Está cheio é de outra coisa.
Apenas um terço dos políticos eleitos presidentes do Brasil de maneira democrática terminaram o mandato. Seria essa uma fragilidade republicana?
É muito do Brasil. Isso só mostra mais uma fragilidade da nossa República, porque mostra a impossibilidade do Executivo terminar o seu mandato. Isso é claro. É preciso que exista esse tipo de recurso (impeachment) na nossa Constituição, mas é preciso também que se proteja um pouco, pouco e não demais, de alguma maneira consolidar o nosso Executivo porque isso gera uma fragilidade republicana tremenda, uma insegurança e reforça os interesses pessoais.
Em meio à discussão do impeachment se retomou a ideia de uma República parlamentarista no Brasil. Até mesmo defensores de um retorno da monarquia apareceram durante as manifestações pelo impeachment. Seriam essas boas saídas para a República brasileira?
Acho que é o escapismo. É a hora de reforçar as nossas instituições sabe, fazer valer as instituições. Há um tempo atrás, houve um plebiscito (em 1993) em que a monarquia teve 16% dos votos [na verdade foram 10,25%, segundo dados do TSE]. Isso é uma ‘Monarquia imaginária’ e esse é um ‘Parlamentarismo imaginário’ porque daria força aos nossos congressistas e eles são sempre os mesmos. E mostraram o que são no rito de votação do impeachment. Nós vimos bem o que são e, por outro lado, somos nós mesmos. Por isso é preciso reforçar as nossas instituições mais do que ficar imaginando projetos.
Arrisca alguma previsão para o futuro da República Federativa do Brasil?
Nenhuma. Historiador é ruim de previsão para burro. Como dizia o Conselheiros Aires (personagem de Machado de Assis em "Esaú e Jacó" e "Memorial de Aires"), as coisas só são previsíveis quando já aconteceram.
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