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"Me deram 1 ano e meio de vida, há cinco anos", conta psicóloga com câncer

Neuzeli Nicácio, 56, diagnosticada com câncer de pulmão há 5 anos, em foto de 2014 - Arquivo pessoal
Neuzeli Nicácio, 56, diagnosticada com câncer de pulmão há 5 anos, em foto de 2014 Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, em São Paulo

08/04/2015 06h00

A psicóloga Neuzeli Nicácio, 56, foi diagnosticada com câncer de pulmão há cinco anos. À época, o médico havia dado um prognóstico de um ano e meio de vida por conta do estágio avançado em que a doença se encontrava. Desde então, com tratamento e acompanhamento contínuos, ela encontrou meios de conviver com a doença da melhor maneira possível. Leia o depoimento:

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Olá, meu nome é Neuzeli, tenho 56 anos, sou psicóloga e tenho câncer. Minha história com o câncer começou há pouco mais de cinco anos, quando andava meio desanimada, cansada e imaginando que poderia estar com depressão, porém, querendo descartar qualquer problema físico antes de buscar um psiquiatra e um psicoterapeuta, marquei consulta com um conceituado clínico geral e pedi para fazer um check-up.

Meu médico pediu todos os exames possíveis e imagináveis, inclusive um raio-X de tórax --quem é que pede raio-X de tórax hoje em dia sem qualquer sintoma nessa área? Os exames não acusaram nada, mas no raio-X apareceu uma manchinha, coisa boba, mas como estávamos investigando ele complementou com uma tomografia de tórax e lá estava um nódulo de 4 centímetros. À época, nódulo e verruga para mim eram praticamente a mesma coisa, nem dei bola, mas o clínico pediu que eu marcasse imediatamente uma consulta com a equipe de cirurgia torácica do Hospital AC Camargo, em São Paulo [especializado no tratamento oncológico].

Fui tranquila, certa de que não era nada, mas não foi bem assim... de cara a equipe do doutor Marcos Vinícius me disse que eu tinha um tumor de 4 centímetros no pulmão direito, e a melhor das hipóteses seria uma cirurgia com retirada de metade do pulmão direito e quimioterapia para complementar, e o pior cenário seria radioterapia, quimioterapia e sabe-se lá o que mais.

Uma bateria de exames adicionais, uma cirurgia de cinco horas e meia para constatar um segundo tumor do mesmo tamanho do primeiro no mediastino [espaço existente entre os dois pulmões] com grande risco para operar e mais linfonodos espalhados em todo o sistema respiratório e um nódulo no fígado, concluindo: um câncer avançado, metastático e inoperável. A cirurgia serviu apenas para biopsiar adequadamente o tumor.

A partir daí houve uma sucessão de acontecimentos, primeiro a recuperação da cirurgia, juntamente com o planejamento da radioterapia que seria realizada em conjunto com a quimioterapia com o objetivo de dar uma 'paulada' no tumor a fim de eliminá-lo. Segundo os médicos, essa chance era de menos de 20%, mas iríamos tentar. Em meio a tudo isso, lidar com todas as questões emocionais. Naquele momento, entrei em parafuso, pois queria a todo custo controlar aquela coisa toda, entender como apesar de ter tentado levar uma vida boa, fazendo o bem, ajudando as pessoas, me dedicando a causas sociais, ainda assim consegui 'construir' um câncer em minha vida. Me senti perdida e pensava: 'não sei como fazer diferente'.

Em nenhum momento me senti vítima, apenas impotente, sem saber o que fazer. Sou praticante da doutrina espírita desde 1987 e sei que somos herdeiros de nós mesmos, então queria saber o que fiz para herdar um câncer, pois acreditava que isso tinha a ver comigo mesma, com meu passado, então não tive problema de aceitação, mas queria compreender o incompreensível, controlar o incontrolável.

Neuzeli Nicácio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Neuzeli Nicácio, 56, diagnosticada com câncer de pulmão há cinco anos, em foto de dezembro de 2010, já careca durante o primeiro ciclo de quimioterapia
Imagem: Arquivo pessoal
Como disse antes, andava meio cansada e desanimada e naquele momento parecia tão simples me entregar à doença e deixar que ela me levasse, me libertasse de uma vida que nem era tão fantástica assim, meus filhos estavam criados e cuidando de suas vidas, parecia que nada de muito significativo me segurava por aqui, porém sabia que não tinha esse direito, que a oportunidade da encarnação era muito preciosa para ser desperdiçada e um dos maiores desafios naquele momento foi fazer a escolha pela vida e para isso eu precisava de uma razão muito forte para continuar vivendo e parecia não haver muita razão e foi nesse momento que eu voltei meu olhar para Deus e disse: 'Meu Deus, não sei qual é o propósito de tudo isso, mas sei que existe e confio que é bom e justo, portanto me entrego em suas mãos e aceito sua vontade para a minha vida. Se for a hora de eu partir, tudo bem, estou pronta, se for para eu ficar, por favor me dê forças para suportar tudo o que está para vir'.

A partir de então, parei de tentar entender, fiz minha opção pela vida e iniciei minha luta. No dia 16 de agosto de 2010, fiz minha primeira sessão de quimio e rádio. Eram seis sessões de quimio e rádio e daí descansava da quimio por três semanas, mas continuava com a radioterapia todos os dias, com exceção dos fins de semana, até voltar com nova carga de quimio junto com a rádio. Foram 34 aplicações de radioterapia e 24 de quimioterapia nesse primeiro ciclo. Passei tão mal que cheguei a dizer ao meu médico que achava que o câncer não me mataria, mas a quimioterapia certamente o faria. Em novembro fiz a última aplicação e acreditava que tinha erradicado a doença, debilitada, mas esperançosa, entrei numa pausa de dois meses.

No final de janeiro, ao realizar os exames para avaliação, foi constatada uma recidiva da doença, que estava se espalhando, e o diagnóstico final era de uma doença crônica sem possibilidade de cura, em que o tratamento seria apenas para contê-la e cujo prognóstico seria de no máximo um ano e meio de vida. Em fevereiro de 2011, iniciei um novo ciclo de quimioterapia ainda mais agressiva que a primeira, com efeitos colaterais quase insuportáveis. Era uma aplicação de três drogas diferentes a cada 21 dias. Ao final de seis aplicações, o tumor havia cedido um pouco e a doença estava sob controle. A partir de então iniciei uma quimioterapia que é uma espécie de vacina, cujo objetivo é manter a doença estabilizada. Desde então estou 'vivendo de gorjeta' há três anos e meio.

Em maio de 2015, faz cinco anos que tive o diagnóstico. Me sinto bem, com alguns sintomas, mas sob controle. A pergunta que não quer calar para muitas pessoas --e inclusive meu médico que diz que não quer falar sobre o meu prognóstico, pois estou totalmente fora da curva-- é: 'o que leva algumas pessoas a burlar totalmente as previsões da medicina, enquanto outras até antecipam essas previsões?' Não tenho resposta para essa pergunta, só posso falar de mim e de como lidei com toda essa situação. Decidi desde o início que o câncer não me definiria, que ele era apenas uma parte da minha vida que precisava ser cuidada e só, e que ele teria o menor tamanho possível.

Naquele tempo, cursava o terceiro semestre de psicologia, minha segunda faculdade, e contrariando a tudo e a todos, não parei com praticamente nada na minha vida. Continuei meu curso, com compensações de ausência nos dias de quimioterapia e dos efeitos colaterais, fiz todos os estágios exigidos, com o apoio e ajuda dos colegas de classe. Continuei o meu trabalho profissional sempre que possível e permitido pelos efeitos. Escolhi viver minha vida, não fazendo loucuras ou coisas que nunca havia feito antes, mas fazendo as mesmas coisas que sempre fiz, principalmente as coisas que mais gosto de fazer.

Sempre digo que Deus colocou dois anjos no meu caminho: minha filha Bárbara e meu filho Felipe que me apoiaram e me apóiam o tempo todo. Minha família de origem, minha mãe, minhas irmãs, meus irmãos, cunhados e cunhadas, sobrinhos e sobrinhas sempre estiveram ao meu lado, o que foi de fundamental importância. Pude contar ainda com uma legião de amigos, vibrando por mim, me levando para tratamentos espirituais e alternativos, rezando como as crianças na ONG onde sou voluntária ou me acompanhando nas sessões de quimioterapia e radioterapia. Encarei de frente cada situação que foi aparecendo, sofri, claro, também chorei quando percebi os tufos de cabelo caindo por três dias, depois ergui a cabeça, mandei raspar, amarrei um lenço e saí pra luta (na segunda vez que caíram foi meu filho mesmo quem raspou), chorei também de emoção, quando meu irmão caçula depois de me ver careca, também raspou careca em solidariedade.

Hoje chamo o câncer de presente, pois me ensinou e tem me ensinado muitas coisas, mesmo com todo o tratamento concluí minha faculdade de psicologia, e estou há um ano fazendo pós-graduação em terapia familiar sistêmica na Unifesp. Em 2011, fiz minha primeira viagem de navio; em 2012, fui conhecer San Francisco e Los Angeles, nos Estados Unidos; em janeiro de 2013, viajei com minha irmã para Tamandaré (PE); passei o Réveillon de 2013/2014 num navio com minha família e em setembro de 2014 participei de uma caravana missionária de 18 dias em Cuba, uma experiência inenarrável.

Acredito que me manter ativa, fazendo as coisas que gosto, tem me ajudado a continuar por aqui. Nesses quase cinco anos de diagnóstico, perdi vários amigos com câncer, um inclusive com o mesmo tipo de câncer de pulmão que eu, diagnosticado depois de mim, que partiu no tempo do prognóstico.

Fico triste quando vejo um amigo partir, e até penso que alguma hora serei eu, é..., mas você também vai e até onde eu sei ninguém sabe o dia de sua partida, nem eu, portanto, estou por aqui, vivendo minha vida e agradecendo pela bendita oportunidade de continuar crescendo e evoluindo.

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