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Manuscrito antigo revela as raízes da criação da medicina

“Hombre Herido,” obra medieval atribuida a Galeno  - Wikimedia Commons
“Hombre Herido,” obra medieval atribuida a Galeno Imagem: Wikimedia Commons

Mark Schrope

08/06/2015 17h45

A primeira vez que Grigory Kessel segurou o velho manuscrito, suas páginas feitas de couro há mais de mil anos pareciam estranhamente familiares.

Especialista em línguas da Universidade Philipps de Marburg, na Alemanha, Kessel estava sentado na biblioteca do dono do manuscrito, um rico colecionador de materiais científicos raros de Baltimore. Naquele momento, Kessel percebeu que apenas três semanas antes, ele havia visto uma página solta em uma biblioteca da Universidade de Harvard que era muito parecida com as outras para ser uma simples coincidência.

O manuscrito que ele segurava continha a tradução de um antigo e influente texto médico escrito por Galeno de Pérgamo, um médico e filósofo greco-romano que morreu no ano 200 d.C. Faltavam algumas páginas do texto e Kessel ficou convencido de que uma delas estaria em Boston.

Em fevereiro de 2013 foi dada a largada a uma caçada global pelas outras páginas perdidas, uma busca que culminou em maio deste ano com a digitalização das últimas páginas redescobertas em Paris.

Os especialistas estão começando a se debruçar sobre o texto, a cópia mais antiga do livro "Sobre as Misturas e Poderes das Drogas Simples". O texto poderá lançar uma nova luz sobre as raízes da medicina e sobre como essa nova ciência se espalhou pelo mundo antigo.

"Essa é uma descoberta importante em muitos níveis diferentes", afirmou Peter Pormann, especialista greco-árabe da Universidade de Manchester, que lidera atualmente os estudos do texto.

O manuscrito encontrado por Kessel é um palimpsesto: textos antigos que foram cobertos por escritas mais novas. Essa era uma prática bastante comum há alguns séculos, uma forma medieval de reciclagem. Neste caso, escritas sírias do século XI substituíram o texto médico de Galeno com hinos religiosos no pergaminho.

O livro de hinos também interessa os pesquisadores, mas por enquanto é o texto original, praticamente invisível ao olho nu e conheido como subtexto, que atrai a imaginação dos especialistas.

Durante séculos, as "Drogas Simples" de Galeno foram leitura obrigatória para aspirantes a médicos em todo o mundo, a reunião de todo o conhecimento antigo sobre medicina, tratamento de pacientes e plantas farmacêuticas. Galeno descreve a goma de uma árvore árabe capaz de curar a "aspereza da garganta" e recomendava a maconha como um remédio contra as dores de ouvido "que não resulta em flatulência" (embora “seque o sêmen").

Boa parte das “Drogas Simples" foram traduzidas para o siríacos, um dialeto aramaico falado pelas comunidades cristãs do Oriente Médio. O subtexto do manuscrito de Baltimore, provavelmente do século nono, é uma cópia da primeira tradução siríaca, feita minuciosamente no século sexto por Sergius de Reshaina, médico e padre siríaco.

"Atualmente, não parece nada demais quando uma pessoa traduz de um idioma ao outro, mas naquela época esse era um grande feito", afirmou Kessel. "Era preciso criar novos vocabulários, encontrar palavras siríacas que correspondessem ao vocabulário médico grego".

No século sexto, cristãos falantes de siríaco estavam se espalhando da Turquia até Síria, Iraque e Irã. Eles precisavam de traduções de textos acadêmicos gregos, em parte para dar apoio ao trabalho missionário nos hospitais da região.

As "Drogas Simples" eram uma obra extensa, um tratado composto de 11 livros. As traduções de Sergius do texto de Galeno foram copiadas e recopiadas ao longo de séculos e se tornaram uma ponte que levava o conhecimento médico dos antigos gregos às sociedades islâmicas. Os textos siríacos eram muito mais fáceis de traduzir para o árabe do que o original grego.

À medida que a influência muçulmana crescia no Oriente Próximo e Médio, as populações cristãs diminuíram, assim como a presença do siríaco.

"As grandes culturas cristãs que usaram o livro sofreram muito", afirmou Columba Stewart, diretor executivo do Museu e Biblioteca de Manuscritos Hill de Collegeville, Minnesota.

"Quando surgiram os especialistas modernos, essas antigas culturas siríacas eram apenas um vestígio de si mesmas – muitas vezes isoladas da cultura ocidental, o que praticamente impedia o conhecimento de sua existência".

Leitura reveladora

Pouco se sabe sobre a história do manuscrito de Baltimore, formalmente conhecido como Palimpsesto Siríaco de Galeno, desde sua reciclagem no século XI até os anos 1920, quando foi vendido a um colecionador particular na Alemanha. Depois disso, o manuscrito sumiu novamente dos olhos públicos até 2002, quando foi comprado por um colecionar em uma venda particular. Até o momento, ele não foi identificado publicamente.

Em 2009, o Palimpsesto de Galeno foi emprestado ao Museu de Arte de Walters para que fossem feitas imagens digitais de suas páginas com a ajuda de um grupo independente de especialistas, revelando o subtexto de Galeno. Cada página foi fotografada em resolução extremamente alta e em diferentes cores e configurações de luz, o que ilumina as letras, os sulcos da escrita e o próprio pergaminho de muitas maneiras diferentes. Algoritmos de computador exploram essas variações para aumentar a visibilidade do subtexto.

As imagens resultantes foram colocadas na internet sob uma licença "creative commons", o que significa que qualquer pessoa pode utilizar o material gratuitamente para qualquer finalidade não comercial. Assim que as imagens foram colocadas na internet, William Noel, curador de manuscritos e livros raros do museu, começou a organizar membros de uma pequena comunidade de especialistas que pesquisam textos científicos siríacos para estudar o novo material.

Um deles era Kessel, que estava fazendo um estágio na Biblioteca de Pesquisa Dumbarton Oaks de Harvard em Washington. Eventualmente, Mike Toth, o engenheiro de sistemas que liderou o trabalho de fotografia das páginas, levou o especialista para conhecer o Palimpsesto de Galeno em primeira mão.

"Eu nem imaginava qual seria sua aparência. Então, quando vi o manuscrito, tive aquela impressão de déjà vu, como se já tivesse visto aquilo antes. Foi quando me lembrei de uma página solta na biblioteca de Harvard", afirmou Kessel.

Preenchendo as lacunas

Por meio da análise do tamanho das páginas, da caligrafia e de outras características, como o texto visível, Kessel foi capaz de determinar que a folha da Universidade de Harvard de fato preenchia uma das lacunas do Palimpsesto de Galeno. Mas ainda faltavam outras seis páginas. Ele resolveu encontrá-las.

Começou com uma lista de 10 bibliotecas conhecidas por seus materiais siríacos antigos, conferindo os catálogos on-line para buscar pistas como as dimensões corretas, ou referências vagas ao subtexto. Algumas vezes, ele foi até as bibliotecas para se certificar.

Não demorou muito até que Kessel tivesse boas notícias. Ele encontrou uma das páginas faltantes no catálogo do Monastério Sagrado Imperial do Santo Monte Sinai, mais conhecido como Monastério de Santa Catarina no deserto do Sinai, no Egito, que conta com a biblioteca mais antiga do mundo em atividade contínua.

Outra página apareceu na Biblioteca Nacional da França, em Paris. E na grande biblioteca do Vaticano, em Roma, o especialista identificou as três últimas páginas do texto.

Uma sétima página faltante provavelmente estava em branco e foi descartada.

Uma ligação intrigante

Ninguém sabia quanto das "Drogas Simples" estaria nas páginas do Palimpsesto de Galeno. A única outra cópia siríaca conhecida do livro está na Biblioteca Britânica em Londres e inclui apenas os livros 6 a 8. As traduções desses livros da série são as mais comuns, já que contêm informações mais específicas.

Mas à medida que os estudos preliminares progrediram, Kessel e seus colegas encontraram palavras dos livros 1 e 2 em uma das páginas soltas. O texto completo das "Drogas Simples" é conhecido dos especialistas, mas através de traduções mais recentes, não do siríaco”.

"Isso foi absolutamente inesperado", afirmou.

Siam Bhayro, especialista em estudos judaicos antigos na Universidade de Exeter, na Inglaterra, acreditava que Sergius tivesse traduzido os outros textos, embora não existissem provas disso. Quando soube que Kessel havia encontrado páginas dessas traduções mais antigas, "eu quase comecei a dançar", comemorou.

Outra das descobertas intrigantes de Kessel foi uma nota em árabe na primeira página, indicando que o manuscrito – que naquela altura era uma livro de hinos que escondia o texto de Galeno – havia sido doado aos padres de Santa Catarina no Deserto do Sinai.

Ainda não se sabe como ele deixou o monastério: especialmente no início do século 20, alguns dos textos da biblioteca foram emprestados de forma legítima, ao passo que outros foram roubados por visitantes que esperavam vendê-los mais adiante.

A equipe independente que está fazendo as fotos do texto está em vias de completar o trabalho necessário para adicionar as páginas redescobertas à coleção digital. Contudo a tradução e o estudo do texto siríaco revelado nas imagens vai levar muito mais tempo, talvez mais de cinco anos. Esse trabalho está sendo realizado por conta de uma bolsa recente de US$1,5 milhão dada pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades do Reino Unido.

Os especialistas estão ansioso para comparar o material siríaco às cópias existentes das "Drogas Simples" escritas em grego, todas as quais parecem ser séculos mais recentes que o Palimpsesto de Galeno e muito mais distantes do original.

À medida que os textos eram copiados, eles passavam por mudanças significativas. Um escriba podia remover partes que considerasse irrelevantes ou acrescentar material com base em novos conhecimentos. Comparar o Palimpsesto de Galeno e a cópia siríaca Britânica, por exemplo, poder oferecer indicações reveladoras de como os antigos gregos tratavam os doentes e de como esses remédios se espalharam pelo Oriente Médio.

Contudo, os conselhos de Galeno seriam pouco relevantes para a medicina moderna.

"Algumas das coisas não são exatamente científicas para os nossos padrões", ainda que tenham sido importantes para o progresso, de acordo com Petit.

"O Sistema Galênico é completamente louco", afirmou Bhayro. Ainda assim, era o máximo que havia para a ciência da época.

"Esse provavelmente será um texto fundamental assim que for completamente decifrado. Esperamos descobrir coisas com as quais nem poderíamos sonhar até agora", afirmou Pormann, da Universidade de Manchester.