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O caminho da Huawei até virar inimiga nº 1 dos EUA, e como Trump o acelerou

Homem tira foro do logotipo da Huawei estampado no Centro de Cibersegurança da empresa em Bruxelas - François Lenoir/Reuters
Homem tira foro do logotipo da Huawei estampado no Centro de Cibersegurança da empresa em Bruxelas Imagem: François Lenoir/Reuters

Helton Simões Gomes

Do UOL, em São Paulo

31/05/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Suspeitas dos EUA em relação à Huawei são antigas
  • Gestão Trump acelerou ações para minar poder da Huawei
  • Pano de fundo são corrida do 5G, poderio em smartphones e a guerra comercial
  • Os motivos para a briga, porém, vão muito além do 5G

Os Estados Unidos não escondem que querem manter a Huawei bem longe de seu território e, se puderem, evitar que outros países usem aparelhos da chinesa. A desconfiança dos norte-americanos com a companhia não surgiu agora --as rusgas pintaram assim que ela chegou aos EUA no começo do século. Mas foi a partir de 2018 que a Casa Branca transformou o que era apenas uma suspeita em política de estado.

De lá para cá, já rolou lei para enxotar a Huawei e até uma onda internacional de boicote. Até o começo de maio, os EUA haviam conseguido que alguns países desistissem de usar produtos da Huawei em suas redes de 5G, o que não tirou o protagonismo da chinesa na nova tecnologia. Só que neste mês, veio a maior vitória: diversas empresas pararam de fazer negócio com a Huawei.

A investida norte-americana contra a Huawei possui diversas implicações, porque a história possui pelo menos três panos de fundo:

  • a chinesa é líder em equipamentos de telecomunicações, o que a torna peça-chave na corrida mundial rumo ao 5G;
  • ela é uma das maiores fabricantes de smartphone do mundo, o aparelho central na experiência das pessoas com o mundo digital;
  • EUA e China estão no meio de uma guerra comercial.

Esse contexto amplo está na raiz dos motivos que sustentam a postura beligerante dos EUA em relação à empresa chinesa, mas não surgiram agora. Apesar disso, foi Donald Trump quem acelerou a transformação da Huawei na inimiga número um dos EUA.

A corrida pelo 5G

Como a treta China x EUA pode afetar sua banda larga.

Guerra da internet móvel

Não é de hoje que os EUA acusam a Huawei de ser uma porta aberta para o governo chinês dar uma espiadinha no que outros países estão fazendo. Como ela fabrica equipamentos responsáveis pela conexão de internet e de telefonia celular, os norte-americanos acreditam que ela poderia implantar brechas de segurança que permitissem a interceptação de dados, as chamadas "portas dos fundos".

A ideia de que a Huawei está conectada ao Exército chinês surgiu em um relatório de 2005, elaborado pela Rand Corporation e patrocinado pela Força Aérea dos EUA.

A Huawei mantém profundas conexões com os militares chineses, que exercem um multifacetado papel como importante consumidor, assim como a de patrão político da Huawei e de parceiro de desenvolvimento
Rand Corporation, no relatório "Uma Nova Direção para a Indústria de Defesa da China
"

O temor de uma suposta interferência chinesa nos negócios já é usado por operadoras de telefonia norte-americanas há quase 10 anos para afastar a Huawei. Em 2009, a Sprint impediu que ela e a ZTE fornecessem equipamentos para sua rede de celular. Em 2012, parlamentares investigaram a Huawei e a ZTE. No relatório produzido a partir desse trabalho, informaram não ter achado nenhuma conduta temerária por parte das duas. Ainda assim, concluíram que usar seus aparelhos poderiam ser um risco:

A investigação conclui que os riscos associados ao fornecimento de equipamentos de Huawei e ZTE para infraestrutura crítica dos EUA poderiam minar os interesses centrais da segurança nacional dos EUA
Congresso dos EUA, em "Relatório Investigativo das questões de segurança nacional dos EUA geradas pelas companhias de telecomunicações chinesas Huawei e ZTE"

A partir da gestão Trump, no entanto, esse medo passou a orientar decisões do governo, à medida que as discussões sobre implantação do 5G passaram a virar realidade. Não é à toa: a quinta geração de tecnologia móvel é tratada como um marco nas telecomunicações.

A aposta é que o 5G não só conectará as pessoas com altíssimas velocidades de internet mas fará o mesmo com diversos aparelhos, a ponto de eles poderem se comunicar. É com essa tecnologia, por exemplo, que a indústria pretende fazer carros que dirigem sozinhos "conversarem" uns com os outros para que o trânsito não vire um caos.

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Os dois protagonistas da guerra comercial: Donald Trump, presidente dos EUA, e Xi Jinping, presidente da China
Imagem: Damir Sagolj/Reuters

Mas e se a empresa que fornece a parafernália para colocar o 5G de pé deixar que um governo estrangeiro espione os dados trocados nessas redes? Bom, é exatamente isso que os EUA dizem que pode ocorrer -- na edição deste ano do Mobile World Congress (MWC), o maior evento de mobilidade do mundo, o UOL Tecnologia acompanhou como os EUA transformaram uma feira de negócio em uma batalha comercial contra a Huawei.

Só que não há provas de que isso pode acontecer. O mais próximo que os norte-americanos chegaram de comprovar suas suspeitas foram informações levantadas pela CIA e publicadas pelo jornal britânico "The Times". Para a agência de inteligência norte-americana, a Huawei "recebeu financiamento de agências do aparato de segurança estatal de Pequim", como:

  • Exército Popular de Libertação,
  • Comissão Nacional de Segurança da China
  • rede de inteligência do estado chinês.

Ainda assim, o financiamento vindo de órgãos estatais não significa necessariamente que haja interferência governamental -- a própria CIA, por exemplo, apoia financeiramente startups norte-americanas. A Huawei já negou diversas vezes que tenham alguma ligação com a China.

Nós nunca participamos de espionagem e nós não permitimos que nossos funcionários façam qualquer coisa assim. E nós nunca instalamos portas dos fundos
Ren Zhengfei, fundador e CEO da Huawei

Roubo de propriedade intelectual

Outra das suspeitas que recai sobre a Huawei é que ela desenvolveu sua tecnologia à base da propriedade intelectual de outras empresas, notadamente as norte-americanas. A primeira das acusações ocorreu em 2003, dois anos depois de a empresa desembarcar nos EUA, quando a Cisco entrou com um processo por infração de patente - o processo foi retirado após a Huawei admitir a ação.

A Casa Branca acredita, no entanto, que a espionagem industrial é patrocinada pelo governo chinês. Para os EUA, a China não só incentiva esse tipo de ação como coloca recursos públicos à disposição de companhias que querem surrupiar patentes e planos de estrangeiras.

Em abril passado, quando os EUA anunciaram pela primeira vez um pacote de restrições comerciais à China, uma entidade federal norte-americana divulgou um relatório com evidências para promover a retaliação. O documento listava indícios do uso de um exército chinês de hackers para roubar segredos industriais de empresas estrangeiras que quisessem se instalar na China.

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Funcionário sai de loja da Huawei em Bancoc, na Tailândia
Imagem: Soe Zeya Tun/Reuters

O caso da Huawei é uma acusação antiga -- tanto que a chinesa já foi condenada pelo caso -- e não envolve invasões cibernéticas. A Huawei foi condenada em 2017 por ter se apropriado em 2006 dos planos de um robô criado pela T-Mobile para testar celulares. Funcionários tiraram fotos, tomaram medidas da máquina e até chegaram a levar para casa um braço robótico. O engenheiro acusado do roubo diz que essa parte do robô caiu acidentalmente em sua bolsa, mas um tribunal de Seattle não comprou a justificativa e mandou a Huawei pagar US$ 4,8 milhões à T-Mobile.

Apesar de aparentemente estar encerrado, o caso foi ressuscitado por uma descoberta do FBI e usado pelo Departamento de Justiça (DoJ) para acusar a Huawei de promover uma verdadeira cultura de roubo de propriedade intelectual. Na ação que corre na Justiça desde janeiro de 2019, a polícia federal dos EUA diz ter obtido emails que mostram que não se trata de um deslize isolado. O roubo, na verdade, é parte de um esforço da Huawei para incentivar o roubo de informações valiosas de outras empresas. Para o FBI, as mensagens datadas de julho de 2013 revelam que a empresa chegava a oferecer bônus a funcionários que fizessem isso.

Quebra de embargo ao Irã

Essa é talvez a rusga mais antiga dos EUA com a Huawei. É de 2007 o indiciamento que colocou a empresa sob suspeita de atuar no Irã, a despeito do embargo internacional imposto ao país. Em janeiro deste ano, o DoJ processou a chinesa por diversos crimes relacionados ao caso, como lavagem de dinheiro, conspiração para cometer fraude e violação às sanções contra o Irã.

Para os norte-americanos, a Huawei mentiu por anos sobre seu relacionamento com uma empresa que opera no Irã, chamada Skycom. Enquanto a chinesa alegava ter apenas um relacionamento limitado com a companhia, o FBI afirma que a empresa é, na verdade, a filial da Huawei no Irã. Tanto é que Meng Wanzhou, a diretora financeira da Huawei, fazia parte do conselho da Skycom.

Para o FBI, a Huawei mentiu até quando informou ter vendido suas cotas na Skycom em 2007, já que a empresa compradora era controlada pela chinesa. Para o DoJ, a Huawei enganou não só as autoridades, mas também diversos bancos, que chegaram a movimentar quantias superiores a US$ 100 milhões da Skycom para os EUA. Como o dinheiro teria vindo do Irã, essas instituições poderiam ser processadas por também violarem o embargo ao país.

O DoJ também acusa a Huawei de obstrução de Justiça, pois, ao saber das investigações, a empresa chinesa teria transferido pessoas com conhecimento dos negócios no Irã para a China -- ou seja: para bem longe da jurisdição das autoridades norte-americanas.

É também por causa desse caso que Wanzhou foi detida no Canadá no fim de 2018. A situação foi ainda mais tensa porque ela é filha do fundador da Huawei, Ren Zhengfei.

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Meng Wanzhou, diretora de finanças da Huawei, saindo de sua casa em Vancouver, no Canadá.
Imagem: Lindsey Wasson/Reuters

O que os EUA fizeram?

A partir da entrada de Trump na Casa Branca, as suspeitas em relação à Huawei passaram a orientar algumas ações

A primeira investida foi a criação do Ato de Autorização de Defesa Nacional (NDAA), uma lei que a partir de agosto de 2018 passou a proibir agências do governo federal de usar certos produtos de telecomunicação e de monitoramento de diversas empresas chinesas, entre as quais a Huawei.

Algumas partes da legislação foram questionadas pela empresa chinesa na Justiça dos EUA em um processo aberto em março deste ano. Para a Huawei, Trump passou por cima da Constituição para criar a proibição.

Em janeiro, foi a vez do DoJ entrar com outras duas ações na Justiça, como descrito acima. Se até então a disputa corria exclusivamente em tribunais e afetava quase que marginalmente os negócios da Huawei, Trump desferiu em um só dia --15 de maio deste ano-- dois golpes que atingiram em cheio o bolso da empresa chinesa.

Por um lado, ele colocou o país em "emergência nacional" para proibir a compra de equipamentos de telecomunicação estrangeiros que coloquem em risco a segurança nacional. Isso reforçou a NDAA. Por outro lado, o Departamento de Comércio incluiu a Huawei e suas subsidiárias na lista das companhias com as quais as empresas norte-americanas não devem fazer negócio. Depois disso, uma série de firmas anunciaram que acatariam a medida, do Google à Intel e Qualcomm.

E no futuro?

Como a Huawei recebeu uma licença para seguir com parte de suas atividades comerciais nos EUA até 19 de agosto, os efeitos sobre sua atividade só começarão a ser percebidos de fato depois dessa data. Até lá, ela tenta adaptar sua cadeia de parceiros à nova realidade. Mas depois disso, não vai ter mais jeito. Os próximos capítulos dessa história devem mostrar ainda se a China vai permitir que uma de suas empresas mais bem sucedidas perca mercado dia após dia sem fazer nada em retaliação.