Topo

'Precisei me segurar para não chorar com o que os refugiados me contavam'

Fatma, que ganhou bolo improvisado para celebrar seu primeiro aniversário; família deixou o Afeganistão para fugir da guerra - Stella Chiarelli/BBC
Fatma, que ganhou bolo improvisado para celebrar seu primeiro aniversário; família deixou o Afeganistão para fugir da guerra Imagem: Stella Chiarelli/BBC

Mariana Della Barba

Da BBC Brasil em Londres

31/08/2015 15h57

Poucas horas depois de deixar a pequena ilha grega de Lesbos, que fica a 20 quilômetros da costa da Turquia, a arqueóloga brasileira Stella Chiarelli desmoronou. Ela conta que chorou "de soluçar" por muito tempo ao lembrar dos dias em que trabalhou como voluntária ajudando os refugiados que chegam diariamente ao território grego.

"Famílias com crianças muito pequenas, grávidas e idosos chegam em botes infláveis superlotados ou são resgatados no mar. Chegam sem saber direito onde estão", contou Stella à BBC Brasil.

"Muitos passaram dias escondidos, sem água nem comida, à mercê dos traficantes de pessoas que organizam essas travessias. São sírios, mas também afegãos, iraquianos, palestinos que estão fugindo da guerra há muito tempo. Tentei ajudar de todas as maneiras possíveis, mas, no final, dá uma sensação de impotência muito grande."

Segundo a Anistia Internacional, desde o início de agosto mais de 30 mil refugiados já chegaram a Lesbos, uma ilha com 86 mil habitantes. Chegam a ser 3 mil refugiados por dia chegando a diferentes pontos da ilha, de acordo com a ONG Rescue International.

Stella trabalhou em um desses pontos, Molyvos (no norte de Lesbos), ao lado de uma moradora do local que decidiu ajudar os refugiados por conta própria, já que no local ainda não há nenhuma ONG trabalhando. Leia seu depoimento:

"Eu moro na Turquia há sete anos, então já via de perto a situação dos refugiados. No ano passado, o drama deles piorou. Eu passei o mês de julho no Brasil e, quando voltei, fiquei chocada. A paisagem de Istambul tinha mudado, com tantos refugiados. Mas nada disso me preparou para o que eu vi em Lesbos.

Eu já queria ajudar de alguma maneira fazia algum tempo. Então, quando alguns amigos me convidaram, na semana retrasada, resolvi ir.

Chegamos em Mytilene, capital de Lesbos, e pegamos o ônibus para Molyvos. No trajeto de 65 quilômetros, vi muitas pessoas andando sob um calor insuportável. A maioria era de homens, mas também vi muitas famílias com idosos e crianças pequenas. Quase não tinha médico lá, mas dava para ver que muitas das crianças estavam doentes, com febre, não sei se com ensolação.

Também conversei com uma mulher síria que estava grávida de gêmeos, de sete meses. Ela me pareceu feliz - e eu só conseguia pensar no que que ela passou para chegar até ali e onde ela iria dar à luz.

Só depois que fui entender que todos eles precisavam chegar até Mytiline para se registrarem e, se tiveram sorte, irem para Atenas. Sem esse registro, eles não podem fazer nada. Nem pegar táxi - já que os taxistas são proibidos de pegar refugiados sem registros.

Um das coisas que mais me chamaram atenção assim que cheguei foi que o lugar não era nem mesmo um campo de refugiados - era apenas um estacionamento a céu aberto. Faltava tudo por ali, até sombra. Sob o sol forte da Grécia, dependendo do horário do dia, não tinha nem um lugar um pouco mais fresco para eles ficarem. As árvores eram poucas, não tinham barracas, só algumas lonas penduradas.

Nesse primeiro dia, eu e os outros voluntários trabalhamos 14 horas. A gente dava sanduíche, água e informações. Muitas das pessoas descem dos botes achando que estão na Europa e que já está tudo resolvido.

Era frustrante ter de explicar que eles ainda tinham de andar no sol três dias para conseguirem se registrar. Conseguimos alguns ônibus naquele dia para transportá-los, dando preferência para mulheres, crianças e idosos. Mas quando não tinha ônibus, precisávamos explicar que a única maneira era andar até lá. Como dizer isso para uma pessoa que já está exausta?

Botes lotados e mulheres sozinhas

Os refugiados vêm da Turquia em botes infláveis. São pequenos, feitos para 10 ou 15 pessoas. Mas eles chegam com grupos de 40 ou 45 pessoas. São famílias inteiras, com crianças, bebês de colo. Também há grupo de homens bem jovens, que vêm em busca de emprego na Europa para poderem mandar dinheiro para suas famílias.

Também encontrei mulheres sozinhas com seus filhos. Mulheres que perderam os maridos ou os pais na guerra e agora têm de fugir sozinhas para tentar uma vida melhor para as crianças.

Falo turco e isso me ajudou a me comunicar com as famílias. Muitos sírios falam turco e pessoas de outras nacionalidades que já tinham passado pela Turquia também tinha aprendido um pouco do idioma.

Ouvi dezenas de histórias e, em cada uma delas, precisei me segurar para não chorar. Muitos sírios me contaram da viagem de vários dias, cruzando a Turquia para chegar na Grécia. Para conseguir fazer essa viagem, eles vendem tudo e ficam na mão desses traficantes de pessoas. Alguns me contaram que tiveram de ficar escondidos por dias, sem comida, nem bebida, até pegarem o bote.

'Me cortou o coração'

Um dos casos que mais me emocionou foi o de uma família afegã - pai, mãe, quatro filhos adolescentes e uma bebê. Conversando com a mãe, ela me contou que eles pagaram US$ 30 mil para os traficantes levá-los até a Grécia e como esperaram três dias escondidos em um bosque, sem comer e sendo agredido pelos traficantes.

Tentei mudar de assunto e, quando comentei da alegria da garotinha, chamada Fatma, ela me disse que era o aniversário de um ano da menina.

Olhei para eles e eles estavam ali, sentados no chão, debaixo daquele sol, no primeiro aniversário da garota. E então a mãe me diz: 'Se estivéssemos em casa, eu ia fazer um bolo bem bonito para comemorar, ia tirar foto...'

Voluntários temem que situação se agrave na semana que vem em Molyvos, quando começam as aulas na escola ao lado de área onde os refugiados estão

Aquilo cortou meu coração de um jeito. Então, no meu intervalo de 15 minutos, corri para comprar um croissant de chocolate e velas. Reencontrei a família e cantamos parabéns para Fatma. Ela estava mais interessada em brincar com as velas, mas a felicidade e a gratidão dos pais é algo que não têm preço.

Eu sei que o que eu fiz não significa muito. Mas poder proporcionar cinco minutos de felicidade para essas pessoas que eu sei que ainda vão passar por tantas dificuldades... foi o meu jeito de dar apoio a eles e dar um pequeno alívio em toda essa dor.

Quando eu perguntei para onde eles queriam ir, eles me disseram que queriam apenas ir para longe da guerra.

Temores

É muito frustrante ter de enviar famílias como as de Fatma para um futuro incerto, já que elas não têm outra opção. Sei que eles ainda podem enfrentar dificuldades terríveis, como as que estamos vendo no noticiário.


Eu tive de voltar para Istambul, mas minha cabeça não sai de Lesbos. O temor era que nessa semana a situação piorasse, porque as férias escolares estavam chegando ao fim e muitos queriam retomar a vida por lá. Também entendo a situação dos moradores.

E foi muito emocionante para mim ver tantas pessoas - moradores, turistas, voluntários - ajudando os refugiados. A gente está tão acostumado a só ver coisa ruim, guerras, tragédias.

Todo mundo ajudava como podia, porque os refugiados de Molyvos estão abandonados. Os voluntários estavam sendo sendo organizados por uma moradora, dona de um restaurante no local. Agora, eles estão recebendo doações do mundo todo e tentando passar informações pela página no Facebook "Help for refugees in Molyvos".