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Sitiado por obras olímpicas, morador tem de mostrar credencial para entrar na própria casa

16/02/2016 17h51

Jefferson Puff - @_jeffersonpuff

Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

"Parece que a gente é presidiário. Não pode trazer visitas, só entra e sai de carro, escoltado. Não faço mais parte da Vila Autódromo, agora eu moro dentro de um canteiro de obras".

É assim que o estudante de contabilidade Pedro Berto, de 24 anos, descreve a atual situação de viver isolado dentro da construção do Parque Olímpico, no Rio de Janeiro.

Ele explica que os trabalhadores da obra, com a ajuda da Guarda Municipal, colocaram tapumes no meio da rua que margeava a obra do Parque Olímpico, na prática dividindo em duas partes a comunidade Vila Autódromo (que há meses passa por polêmico processo de remoção), e expandindo os limites de parte das construções olímpicas até a Lagoa de Jacarepaguá.

No processo, as casas de Pedro e de outra família foram "engolidas".

"Isso mudou tudo. Minha mãe e minha irmã saíram daqui, não tinha a mínima condição de elas morarem dentro da obra. Além de todos os riscos há uma série de focos de mosquito, e ficamos preocupados com os vírus da dengue, zika e chikungunya", diz.

Apesar de ele compartilhar alguns dos problemas das cerca de 60 famílias que restaram na comunidade que existe há mais de 20 anos (eram cerca de 600 famílias até dois anos atrás), a situação de Pedro é emblemática.

"Na prática, agora, eu moro dentro da obra. Não tem mais carteiro, coleta de lixo. Tem dia que tem luz, tem dia que tem água, tem dia que não tem nenhum dos dois. Não posso receber visitas, e se eu passar mal e ligar para um bombeiro, vão achar que é trote se eu disser que moro dentro do Parque Olímpico", conta.

Pedro levou a equipe da BBC Brasil até sua casa, que durante muitos anos sediou um centro de candomblé de sua família, atividade que também está impossibilitada.

Ele mostrou como percorre (somente de carro) os mais de 2 km entre a guarita de segurança das obras e a casa, passando ao lado das arenas e estádios que dentro de alguns meses receberão atletas e turistas de todo o mundo.

"É surreal. Eles estão impedindo meu direito de ir e vir. Eu sou cidadão, eu ainda moro aqui, e ainda tenho minha casa, mas a verdade é que a gente sai sem saber se quando a gente voltar a nossa casa vai estar de pé. Parece que a gente está na Palestina, está tudo bombardeado", explica o universitário, que cresceu no bairro que já foi vizinho do Autódromo de Jacarepaguá e que nos últimos anos vem lutando contra um processo de remoção em meio às obras olímpicas.

Segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro, as remoções ocorrem por conta do traçado das obras do Parque Olímpico e da necessidade de expansão do acesso de avenidas expressas ao local. Alguns moradores foram levados para um conjunto habitacional, o Parque Carioca, e outros receberam indenizações.

O processo, no entanto, é cercado de polêmicas, e moradores e o Núcleo de Terras e Habitação acusam as autoridades de abusos e violações - alguns dizem que os moradores não têm a chance de retirar seus móveis antes da demolição das casas e perdem seus pertences.

Acusações e decisões judiciais

Em declarações à imprensa e a moradores da Vila Autódromo nos últimos meses, o prefeito Eduardo Paes disse repetidamente que "parte da comunidade poderia ficar e que só sairia quem quisesse".

Em entrevista à BBC Brasil em 15 de agosto do ano passado, Paes reiterou a afirmação.

"Eu digo isso para eles todo dia, desde o início. Eles têm vídeos meus gravados. A gente já apresentou esse mapa. O que sai são (as casas) nos acessos do Parque Olímpico e a beira da Lagoa, onde tinha um monte de gente rica e é área de proteção ambiental. Todo o resto fica. Só sai quem quer", disse à época.

Meses antes, no entanto, em 19 de março de 2015, Paes assinou um decreto tornando 58 casas como de "utilidade pública", encerrando a negociação com os donos dos imóveis e abrindo caminho para a remoção direta. A seis meses dos Jogos, a Defensoria Pública do Rio ainda luta pela permanência de quatro dessas casas, e a maioria já foi destruída.

"Resta apenas 10% da comunidade. De cerca de 600 casas, não há mais do que 60 atualmente, e não temos nenhuma negociação ou canal de diálogo em aberto com a Prefeitura, estamos apenas tentando garantir o direito das famílias que querem ficar, como dizia o discurso do prefeito, e lutando na Justiça para que cessem as práticas de terror e tortura psicológica contra a comunidade", diz João Helvécio, coordenador do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública estadual.

O defensor público cita uma decisão da juíza Roseli Nalin, de 1º de fevereiro deste ano, na qual a Prefeitura é intimada a interromper práticas como deixar entulhos de casas demolidas por semanas e meses na comunidade, destruir parte de casas vizinhas às que estão sendo demolidas (por acordo com o morador ou ordem judicial), além de garantir que não ocorram cortes do fornecimento de água, luz e telefone dos moradores remanescentes - o que segundo a Justiça é uma forma de coagi-los a deixar os imóveis.

A própria Defensoria Pública elaborou, em janeiro deste ano, uma petição de 17 páginas, à qual a BBC Brasil teve acesso, elencando irregularidades como entulho deixado para trás, excessos da Guarda Municipal, cortes de água e luz, além do isolamento das duas famílias dentro do Parque Olímpico.

"Diversas vezes já foi dito para a gente que quem quisesse ficar ficaria, mas sabemos que essa não é a realidade. A realidade é que potencialmente, quem conseguir resistir, fica, mas a resistência está cada vez mais difícil. Apesar de a gente ter título de posse, ter concessão de uso do Estado, por 99 anos", diz Pedro Berto.

Intimidação e Prefeitura

Para a moradora Maria da Penha Macena, que há 23 anos reside na Vila Autódromo e tem sido uma das ativistas mais vocais pela resistência da comunidade, as ações são intimidatórias.

Questionada pela BBC Brasil sobre a vista de sua varanda, de onde há pouco mais de seis meses era possível ver muitas casas, hoje em grande parte removidas, ela explica o momento atual.

"A pressão foi muito grande, e ficou cada vez mais difícil resistir. Eu ainda estou firme e forte na luta, estou lutando na Justiça pela permanência da minha moradia. O processo da prefeitura deu certo, à base de pressões, mentiras, de todos os meios que eles usaram, eles conseguiram levar a comunidade. Resta muito pouco", explica.

Ela diz que os moradores têm sido alvo de irregularidades, já que ainda pertencem à cidade e não poderiam ficar sem os serviços básicos como luz, água e coleta de lixo.

"Estou sem telefone há um mês, e até agora ninguém veio recolocar a linha. O carteiro não passa mais aqui, e a Comlurb vem recolher o lixo de 15 em 15 dias, e apenas na entrada. O resto do lixo fica todo dentro da comunidade, acumulado. Nós fazemos parte desta cidade, ainda estamos aqui. Temos que ser respeitados", diz.

O prazo para a Prefeitura prestar explicações sobre as práticas e o cumprimento das decisões judiciais expira nesta quarta-feira, dia 17 de fevereiro.

Procurada pela BBC Brasil, a Prefeitura não comentou as acusações de irregularidades nem as ações judiciais e limitou-se a responder sobre as recentes demolições de três casas da comunidade.

'A área construída em uma propriedade foi demolida legalmente, com autorização judicial. O processo de negociação com os moradores da Vila Autódromo sempre foi transparente. Várias reuniões de grupo foram realizadas para o esclarecimento individual às famílias", diz a nota enviada à BBC Brasil.