Não amar nem sempre quer dizer odiar, diz Umberto Eco
Nos últimos anos eu escrevi sobre o racismo, a construção psicológica do inimigo e a função política da expressão de ódio pelos "outros" ou do desprezo pelo conceito de diversidade. Eu acreditava já ter dito tudo o que havia a dizer sobre essa questão, mas em uma conversa recente com o meu amigo Thomas Stauder, surgiram algumas questões novas --bem, pelo menos para mim elas eram novas. Foi aquele tipo de conversa após a qual a gente não consegue se lembrar exatamente quem disse o que, mas que foi marcada por uma concordância quanto às conclusões.
As pessoas tendem, com uma tolice bastante pré-socrática, a enxergar o amor e o ódio como dois opostos --alternativas mutuamente necessárias e simétricas. Ou seja, se nós não amamos uma determinada pessoa, temos necessariamente que odiá-la, e vice-versa. Obviamente, no entanto, existem infinitos estágios intermediários situados entre esses dois polos. Mesmo se utilizarmos os termos metaforicamente, o fato de eu adorar pizza, mas não ser louco por sushi, não significa que eu odeie sushi --eu simplesmente gosto menos de sushi do que de pizza. O fato de eu adorar alguém não significa que eu odeie todas as outras pessoas; o oposto do amor pode tranquilamente ser a indiferença. Eu amo os meus filhos, e sou indiferente em relação ao motorista de táxi que me buscou duas horas atrás.
Mas o fato concreto é que alguns tipos de amor são isoladores, exclusivos. Se eu me encontrar loucamente apaixonado por uma mulher, eu esperarei que ela ame a mim e não a outros (ou pelo menos não da mesma forma). De forma similar, uma mãe sente um amor intenso pelos seus filhos e deseja que eles a amem de uma maneira especial, e ela jamais sentir-se-á compelida a amar os filhos de outras pessoas com a mesma intensidade. Portanto, da sua maneira própria, o amor é egoísta, seletivo e possessivo.
É claro que existe aquele mandamento que nos diz para “amar” os nossos vizinhos – todos os sete bilhões de seres humanos – da mesma forma que nós amamos a nós próprios. Mas, na prática, esse mandamento apenas nos obriga a não odiar ninguém; ele não significa que nós tenhamos que amar um desconhecido da mesma maneira que amamos os nossos pais ou os nossos netos.
Eu amo o meu neto mais do que, digamos, um caçador de focas que eu jamais conheci pessoalmente. Isso não significa que para mim não teria a menor importância se um homem que mora do outro lado do mundo morresse, mas o fato que é que em qualquer circunstância eu ficaria mais abalado com a morte da minha avó do que a de um desconhecido.
Por outro lado, o ódio pode ser coletivo. Na verdade, especialmente sob regimes totalitários, ele tem que ser necessariamente coletivo. Quando eu era criança, o Partido Fascista me perguntou se eu odiava todos os filhos de Albion (Grã-Bretanha), e todas as noites Mario Appelius recitava no rádio o seu ritual "Que Deus amaldiçoe os ingleses". É isso o que desejam os ditadores e os populistas – e também as facções religiosas fundamentalistas –, já que o ódio por um inimigo comum une as pessoas e faz com que todas elas sintam o mesmo ardor.
O amor aquece o coração em relação a apenas algumas poucas pessoas selecionadas. Já o ódio aquece o coração em relação a todos os que estão do nosso lado, e é capaz de mobilizar um grupo contra milhões de indivíduos: uma nação, um grupo étnico, pessoas que têm a cor da pele diferente ou aquelas que falam outra língua. Um italiano racista pode odiar albaneses, romenos ou ciganos. Umberto Bossi, o líder do partido italiano Liga Norte, detesta todos os italianos do sul (e ao considerarmos que o salário dele é pago, em parte, pelos impostos cobrados dos sulistas, tal fato é realmente uma obra prima de malignidade, na qual o ódio se integra ao prazer de atormentar ainda mais os atormentados). Quando era primeiro-ministro, Silvio Berlusconi deixou claro que detestava juízes e pediu ao povo italiano que fizesse o mesmo – e que detestasse também todos os comunistas, mesmo que isso significasse conjurar imagens destes indivíduos que não existem mais.
Portanto, o ódio não é individualista, mas sim generoso e inclusivo, englobando multidões inteiras de uma só vez. Somente nos romances nos dizem que é bonito morrer por amor; e geralmente o herói que mais deve ser imitado é aquele que sucumbe ao derrotar o vilão – o inimigo odiado.
A história da nossa espécie é mais marcada por ódio, guerras e massacres do que por atos de amor, que são intrinsecamente menos confortáveis e também bastante cansativos quando ousam transcender o círculo imediato do nosso egoísmo. A nossa queda pelos prazeres do ódio é tão natural que os líderes manipuladores não encontram nenhum empecilho para estimulá-la. Por outro lado, em determinadas ocasiões, ao que parece, nós somos encorajados a amar apenas por intermédio de personagens fictícios e repulsivos que têm o hábito desconcertante de beijar leprosos.
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