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O custo de ser indulgente em um fetiche

Umberto Eco

22/05/2014 00h03

Se você folhear catálogos de casas de leilão como Christie's ou Sotheby's, você verá que, além de obras de arte, livros raros e manuscritos autografados, elas também vendem o que é conhecido como "memorabilia" –os calçados usados por um astro do cinema no papel que o projetou, a caneta que antes pertenceu a Ronald Reagan, e assim por diante. Mas há uma diferença entre colecionar passionalmente, por mais bizarros que os itens possam ser, e a caçada fetichista por memorabilia.

Consulte um dos boletins dedicados a coleções e você descobrirá que as pessoas colecionam coisas como maços de cigarro, tampinhas de Coca-Cola e cartões telefônicos. Pessoalmente, eu considero mais nobre colecionar selos do que tampinhas de garrafa, mas quem sou eu para julgar? O coração quer o que ele quer. Esses colecionadores podem ser obsessivos, mas ao menos sua paixão e entusiasmo são compreensíveis.

Mas é algo diferente se você deseja a todo custo aquele par –e apenas aquele par– de calçados usado por um astro do cinema. Agora, se você colecionasse cada par de calçados usado por um astro de cinema no qual pudesse por as mãos, haveria algum método na loucura. Mas o que fazer com um único par?

Eu pensei sobre isso recentemente, quando me deparei com duas notícias interessantes no "La Repubblica". A primeira era sobre Matteo Renzi, o primeiro-ministro da Itália, que colocou 170 carros de luxo de propriedade do governo para leilão no eBay. Eu entenderia se alguém quisesse comprar uma Maserati e aproveitasse esta oportunidade para comprar uma (apesar de uma com muita quilometragem) por um preço baixo. Mas onde está o sentido de entrar em uma guerra de lances pela Maserati –talvez pagando no final até duas ou três vezes seu valor– apenas porque já transportou alguma autoridade de governo em particular? Isso não se trata de comprar um carro; é de ser indulgente em um fetiche.

A segunda notícia envolvia os planos de leiloar uma coleção de cartas de amor –algumas delas picantes– que Ian Fleming escreveu na faixa dos 20 anos. Em uma, ele escreveu: "Eu beijo você em toda parte, especialmente (ele desenhou Xs para indicar a boca, os seios e a genitália) e apertar você até gemer".

É perfeitamente legítimo colecionar textos autografados, e dada a escolha, pode ser mais divertido ter alguns exemplos picantes na coleção. Eu suspeito que até mesmo um colecionador casual ficaria feliz em ser dono da carta na qual James Joyce escreveu para Nora Barnacle: "Quero que me dês pancadas ou mesmo que me açoites. Não de brincadeira, querida, de verdade e na minha pele nua". Ou a que Oscar Wilde escreveu ao seu amado lorde Alfred Douglas: "É maravilhoso que os seus lábios da cor de pétalas de rosas vermelhas foram feitos não menos para a loucura que é a musica e o canto quanto para a loucura de beijar". As cartas no mínimo dariam um excelente tema para conversa ao mostrá-las aos amigos, quando tivesse vontade de passar uma noite fofocando sobre os grandes da literatura.

Mas o que não faz sentido para mim é o valor frequentemente dado a esses itens no contexto da história e crítica literária. Saber que Fleming escrevia cartas típicas de muitos adolescentes excitados diminui nosso prazer de suas histórias de James Bond, ou alteraria nossa avaliação crítica de seu estilo literário? Quanto a Joyce, para entender seu tipo particular de erotismo literário, basta conferir "Ulisses" –especialmente o último capítulo. Não importa se a vida pessoal do autor foi definida pela castidade ou pela devassidão. A verdade é que muitos grandes da literatura não escreviam prosa lasciva enquanto levavam vidas virtuosas, mas sim escreviam prosa virtuosa enquanto levavam vidas lascivas. Mudaria nossa opinião a respeito de "Os Noivos" se descobríssemos que Alessandro Manzoni era um animal na cama e que seu apetite sexual insaciável fez com que suas duas esposas caíssem mortas de exaustão?

Pode haver uma diferença entre cobiçar a Maserati de um político famoso e colecionar documentos que provem a proeza (física ou literária) de certos autores. Mas, no final, ambas se resumem a fetichismo.

(Umberto Eco é autor dos best-sellers internacionais "Baudolino", "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault", entre outros)