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Os refugiados e uma nova religião com base na solidariedade

Nilufer Demir/Reuters
Imagem: Nilufer Demir/Reuters

Umberto Eco

31/10/2015 06h00

A solidariedade para com as pessoas em busca de asilo na Europa não surgiu em um único dia. Ela vinha ardendo sob a superfície há algum tempo. Mas foi preciso uma foto de uma criança síria afogada –e uma corajosa chanceler alemã– para que ganhasse voz

Matteo Salvani, o líder do xenofóbico partido Liga do Norte da Itália, estava certo quando comentou recentemente que a hábil chanceler da Alemanha, Angela Merkel, fechou um acordo de primeira ao acolher dezenas de milhares de sírios, muitos deles profissionais com alta escolaridade, para ajudar a estimular o produto interno bruto de seu país. E, ele acrescentou, o restante da Europa pode ficar com as sobras.

Mas uma pergunta vem à mente: por que um homem tão astuto como Salvani não pensou nisso primeiro? Afinal, há muitos milhares de sírios aqui na Itália. Além disso, é tão difícil imaginar que poderíamos encontrar mais que alguns poucos imigrantes com boa escolaridade entre os outros grupos étnicos? Por exemplo, eu encontro com frequência homens senegaleses vendendo guarda-chuvas e malas nas ruas de Milão, que falam francês e italiano com fluência e dizem ter cursado a faculdade.

Décadas de democracia alemã não apagaram totalmente a imagem na consciência do Ocidente do alemão intransigente gritando “kaput”. Esse fantasma horrendo pareceu ressurgir durante a recente crise da dívida grega. Mas Merkel conseguiu transformar essa imagem nacional terrível em uma compassiva: um alemão (ou austríaco) sorridente pronto para acolher famílias de refugiados (e não apenas os sírios com diploma superior), fornecer necessidades vitais ou mesmo uma simples carona em seu carro.

A esta altura parece que Merkel selou o acordo, apesar dos problemas que surgiram com o fornecimento de moradia e alimentação para milhares de recém-chegados. Ela também está enfrentando críticas cada vez maiores por parte do público alemão e dos políticos do país, inclusive de seu próprio partido, pela forma como ela lidou com a crise. Mesmo assim, ela continua defendendo sua decisão.

Mas a compaixão dela em relação aos imigrantes não é boa apenas para a economia; ela representa algo bem mais profundo. Isso ficou claro no início de setembro, quando o mundo viu pela primeira vez a foto de Aylan Kurdi, o menino sírio de 3 anos encontrado afogado em uma praia em Bodrum, Turquia.

Em uma conferência de mídia realizada posteriormente naquele mês na Riviera italiana, o jornalista Mario Calabresi observou que uma foto sozinha não justifica a conversão global instantânea.

Mas, ele explicou, pode-se chegar a um momento crítico após uma quantidade significativa de tensão e desconforto acumulada com o tempo. Nesses momentos, uma imagem sozinha pode provocar uma transformação profunda. Isso já aconteceu antes na história. No caso do jovem Aylan, um senso de solidariedade estava ardendo sob a superfície há anos.

Pense nisso como uma nova religiosidade. Hoje, as religiões tradicionais estão em crise e com frequência em conflito umas com as outras, mas essa nova solidariedade supera as divisões entre cristãos católicos, protestantes e ortodoxos. Pode até mesmo superar as divisões entre cristãos e muçulmanos. O papa Francisco se tonou um intérprete dessa nova religiosidade ao pedir para que cada paróquia, comunidade religiosa ou mosteiro ajudasse e abrigasse ao menos uma família de refugiados.

Por anos as pessoas se preocuparam com o desaparecimento dos centros educacionais tradicionais para jovens, independentemente de serem administrados pela Igreja ou vários partidos políticos, e a solidariedade social que forneciam. Mas, pouco a pouco, uma sensibilidade semelhante vem sendo cultivada, mesmo sem eles.

Na Itália, vimos os primeiros sinais dessa camaradagem quando Florença foi atingida por enchentes em 1966, e centenas de jovens de todo o país –e de todo o mundo– vieram à cidade atingida para retirar livros da lama na Biblioteca Nacional. Mais recentemente, vimos evidência desse fenômeno na Médicos Sem Fronteiras, voluntários que foram à África e nos centenas de estudantes trabalhando sem remuneração em vários festivais culturais.

Essa solidariedade está destinada a durar? Não sei, mas certamente ela é alimentada pelo comportamento miserável de outros. Em termos de seu poder e amplitude, ela será capaz de superar as ondas de xenofobia que agora correm por toda a Europa? Talvez devêssemos lembrar que as primeiras comunidades cristãs eram minúsculas em comparação ao paganismo triunfante que as cercava.

Essa nova religião da solidariedade sem dúvida terá seus mártires, e não é preciso procurar muito para perceber que muitas pessoas estão preparadas para derramar sangue para sufocá-la. Mas talvez sejam elas, e não os imigrantes, que serão detidas.