Herdeiro da Riachuelo lança curso para formar "político de direita"
Haja didatismo. Em oito módulos de duas horas cada, o herdeiro da rede de lojas de departamento Riachuelo Gabriel Rocha Kanner, 30 anos, pretende orientar aspirantes a 'político de direita' que queiram se candidatar nas eleições municipais. O curso é oferecido pelo Instituto Brasil 200, fundado em 2018 por um grupo de empresários bolsonaristas, entre eles Flávio Rocha, tio de Gabriel.
"A ideia é disseminar cada vez mais os valores em que a gente acredita. Existem outros cursos que promovem formação política, mas o nosso vai ser o primeiro a formar políticos de direita", explica Gabriel, que é presidente do IB200. Em 2018, ele chegou a se candidatar a deputado federal pelo PRB, mas não se elegeu. Obteve 27.324 votos.
O curso é gravado, vai custar R$ 199,99 e as vendas começam em duas semanas. Como o instituto ainda não abriu as inscrições, não foi possível localizar eventuais interessados. "Falta gravarmos com dois palestrantes. Está ficando muito bacana", garante.
Mergulho de cabeça
Na quinta-feira, Gabriel recebeu a coluna em seu apartamento, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, para uma entrevista em que expõe seus pontos de vista. Conta que "mergulhou de cabeça" na política a partir de 2018, em Nova York, quando cerca de 400 empresários presentes à feira da NRF (National Retail Federation), considerada a maior do varejo no mundo, assinaram o manifesto Brasil 200 (o número é uma referência aos dois séculos de independência do Brasil, a serem completados em 2022, ano em que os correligionários do instituto esperam reeleger Jair Bolsonaro).
Depois da imersão profunda na política, Gabriel já pode dizer: "O primeiro representante legítimo de uma direita no Brasil é o Bolsonaro".
Primeira dúvida
O que seria representar legitimamente a direita?
"É acreditar na responsabilidade individual, na meritocracia, e assumir os próprios atos. As pessoas podem crescer na vida através do seu trabalho. Ao contrário da esquerda, que avalia a pessoa pela aparência e primeiro quer saber se ela é branca, negra, homem, mulher, homossexual ou hétero, nossa preocupação é com os valores em que ela acredita. Se é uma pessoa boa ou não."
O que é uma "pessoa boa"?
"É a que tem bons valores, que não quer fazer mal aos outros, que entende que sua liberdade vai até onde começa à do outro. Que vive a vida de forma a crescer, ser feliz, se desenvolver. Se puder ajudar outras pessoas nesse caminho, ótimo."
Entre as "pessoas boas" citadas por Gabriel estão, além de Bolsonaro, os empresários Luciano Hang (Havan); Sebastião Bomfim (Centauro); João Appolinário (Polishop), Washington Cinel (Gocil) e o próprio tio dele, Flávio Rocha, todos fundadores do IB200.
Ajuste necessário
Eventualmente, será preciso fazer um ajuste entre os valores disseminados pelo instituto e os do personagem que Gabriel toma como exemplo. Bolsonaro já se mostrou misógino, machista, homofóbico, e, em sua alegada generosidade, costuma homenagear torturadores. Supõe-se que os "empresários do bem" fundadores do instituto têm os mesmos princípios.
Sobre a ajuda que o representante legítimo de direita presta aos outros, "em seu caminho", pergunta-se se é indiscriminada. "O Queiroz obviamente tem de ser investigado. Fica muito claro que havia rachadinha no esquema de Flávio Bolsonaro, como havia no de todos os deputados da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro)", diz ele.
Crime menor x maior
Na tentativa de desmerecer a rachadinha, Gabriel cita um crime "muito maior", da esquerda: "Não dá para comparar a rachadinha com o projeto de poder do PT, em 13 anos de governo!! Foi o maior assalto aos cofres públicos da história do Brasil!"
Aparentemente, a comparação com o crime alheio produz uma espécie de salvo-conduto para que o representante legítimo de direita possa perpetrar assaltos menores.
A suspeita de associação dos Bolsonaro com a milícia carioca, por exemplo, que domina cerca de 50% das favelas do Rio, nem é tão grave. "Não houve nenhum caso de corrupção no governo até agora."
Parece haver uma tendência do instituto a relativizar o conceito de "corrupção".
Esquerda lúdica
Formado em relações internacionais, Gabriel conta que nem sempre foi de direita: "Dizem que qualquer pessoa que tenha um bom coração já foi esquerdista na adolescência. Eu me encantei com essa coisa lúdica, de querer salvar o mundo, querer corrigir as injustiças, isso é um discurso muito forte nessa idade", acredita.
A brincadeira acabou quando, providencialmente, arranjaram um emprego para ele na empresa da família. A princípio, Gabriel participou de um "intenso programa de trainee" e passou por todas as áreas: "Descarreguei caminhão e fiquei no caixa. É muito importante saber como funciona a operação", acha.
Animado com a experiência empresarial, o jovem executivo pôs um ponto final na "mistificação da esquerda". "Descobri que aquele discurso do Marx era totalmente falacioso, não fazia sentido em um mundo real. O próprio conceito da mais-valia é economicamente falho. As trocas entre as pessoas acontecem de forma voluntária. Elas trabalham em determinada empresa porque querem, precisam, e recebem uma remuneração por aquilo. E as empresas as contratam para fazerem os seus negócios crescerem, obterem lucro. É um sistema de troca que acaba beneficiando todos os envolvidos."
Teoria da vovó
Será que a enorme disparidade social registrada no Brasil pode comprometer o sistema de troca benéfica entre os envolvidos? Gabriel diz que já foi pior: "Na época da minha avó, a pobreza era muito maior. No início do capitalismo, depois da Revolução Industrial, 90% da população mundial vivia em extrema pobreza. Hoje, passados apenas 200 anos, em 20 mil da história da humanidade, esse número caiu para 10%."
Não no Brasil. Informo que o País ocupa o sétimo lugar no ranking de países de maior desigualdade de renda no mundo. De acordo com um relatório de desenvolvimento humano divulgado em dezembro do ano passado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), ficamos à frente apenas da África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-africana, Lesoto e Moçambique.
Gabriel parece surpreso. Tudo indica que seus mentores da direita do bem pularam esse capítulo.
Sofá branquíssimo
A atmosfera asséptica da sala do dúplex de pé direito alto, situado em um prédio estilo "neo-clássico", reforça o discurso em defesa da transparência. Sentado em um sofá branco, imaculado, Gabriel conta que é o caçula de quatro filhos, e o único homem. Pele alva, olhos azul-bebê, ele veste jeans e uma camisa social com as iniciais de seu nome bordadas na altura do peito.
"Ele parece bem mais novo", comenta a namorada, Marthina Brandt, 27, que está do outro lado da mesa de centro espelhada, em um sofá também branquíssimo. Cabelos longos e obedientes, olhos claros e pele cor de terracota, Marina usa uma calça preta, blusa bege e chinelos estilizados. Passa o tempo todo checando informações no celular, em uma atitude displicente. Diz que nasceu em Porto Alegre, trabalhou como modelo e agora é terapeuta.
Fase complicada
Comento que os transtornos provocados pela quarentena devem ter levado muita gente a procurar terapia. "É uma fase complicada pra galera", ela concorda. Circula ainda pela sala uma cadela da raça lulu da pomerânia batizada Ivashönen. Eles a chamam pela forma reduzida: "Iva". Segundo Marthina, significa "ela é bonita" em alemão: "É a minha língua-mãe". Do lado de fora, em uma parte gradeada da varanda, fica uma papagaia congolesa chamada Nala, nome dado em homenagem à saga do Rei Leão.
Marthina e Gabriel se conheceram recentemente, em uma "ação social". Defensor do assistencialismo, ele se orgulha de ter distribuído 120 mil marmitas em um trabalho promovido pelo instituto. "Tinha gente sem beber água há dois dias", ele conta, com a expressão de um garoto prestes a fazer primeira comunhão.
Muito séria, Marthina pergunta ao repórter: "Você já foi em uma comunidade? Eu te convido a ir. É muito legal você desconstruir tudo o que governos anteriores dizem que fizeram por aquelas pessoas..."
Sobre notícias inventadas
Apesar de um grupo de apoiadores de Bolsonaro ser alvo de inquéritos que apuram o disparo em massa de fake news, Gabriel afirma que quem cria fatos é a "imprensa de esquerda", ou "a maioria dos jornalistas". Diz que a quantidade de notícias falsas publicadas é enorme.
Peço para ele citar uma.
"Agora eu não lembro, mas...Bom, teve aquela troca de mensagens do Moro quando ele saiu do governo, dizendo que o presidente tinha interferido na polícia federal..."
Tento explicar que isso não é fake news. Que existe uma diferença entre invenção deliberada e notícia. Digo a ele que nenhum jornalista ignoraria uma mensagem enviada pelo ex-ministro da Justiça, especialmente se fosse a fundamentação de uma acusação grave feita ao presidente da República.
Sem ninguém do bem para acudi-lo, Gabriel reage com um esgar de contrariedade.
Definitivamente imperdível
Entre os módulos do curso, estão "comunicação com a imprensa", "redes sociais", "oratória", "direito eleitoral", "sistema político brasileiro" e "partidos políticos e suas ideologias".
A coluna tentou falar com dois professores, mas eles não quiseram se manifestar. Pediu também para assistir a um dos módulos, a título de degustação, mas Gabriel não enviou. Uma pena.
Tomando Bolsonaro como representante legítimo da direita, exemplo a ser seguido pelos alunos, fica a curiosidade: como será o módulo sobre "relacionamento com a imprensa"? Que tipo de abordagem o professor de "rede sociais" dará ao tema fake news?
O curso promete.
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