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Paulo Sampaio

A exposição da menina abusada foi um 'estupro coletivo', diz ginecologista

Albertina: "O governo deveria se comprometer a fazer um cadastro desses casos, e não deixar cair no esquecimento" - Arquivo Pessoal
Albertina: "O governo deveria se comprometer a fazer um cadastro desses casos, e não deixar cair no esquecimento" Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

19/08/2020 05h00Atualizada em 20/08/2020 13h06

Para a ginecologista Albertina Duarte Takiuti, coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo, a menina de 10 anos que sofreu abuso sexual, engravidou e passou por um aborto legal há cinco dias foi duplamente estuprada.

"Além da experiência 'oficial' de abuso, constatada cientificamente, ela precisou entrar em um hospital às escondidas, na mala de um carro, para não ser agredida por grupos de manifestantes conservadores que chegaram a chamá-la de assassina. Isso foi um estupro coletivo. Imagine as marcas profundas, não só físicas, mas psicológicas, que a superexposição dessa criatura na mídia pode provocar. Publicaram até o nome dela nas redes sociais. Nem dez anos de terapia recuperam isso."

Sentido dores abdominais, a menina foi atendida no dia 7 em uma unidade de saúde em São Mateus, no interior do Espírito Santo, onde mora, mas ali não constaram a gravidez. Levada no dia 14 para o Hucan (Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes), em Vitória, ela fez exames que revelaram a gestação de 22 semanas. No mesmo dia, a Justiça autorizou o aborto, mas o hospital alegou que não tinha condições técnicas de realizar o procedimento.

A mãe da criança, que tinha histórico de andarilha, é falecida, e o pai está preso. Ela vive com os avós.

"Como é que em um país onde se registram 66 mil estupros por ano, dos quais 53% em meninas de até 13 anos, existe um hospital que não tem 'condições' de realizar um aborto legal?", pergunta Albertina, que coordena o programa do adolescente em SP há 36 anos. "Que se capacitem com urgência profissionais para atender esses casos! Não se trata de exceções!"

Na entrevista abaixo, a médica fala da necessidade de uma rede de solidariedade para reconduzir a menina à escola, à família e aos amigos; alerta para o vírus da agressão (tão ou mais nocivo que o novo coronavírus) e sobre a importância de se lembrar sempre de todos os casos como esse. "Não adianta expor isso no noticiário por uma semana, depois esquecer. Onde está, por exemplo, a adolescente que foi estuprada por 30 homens no Rio, na volta de um baile funk?"


UOL -- A sociedade fez um grande alarde em relação a esse caso -- que sem dúvida é abominável --, mas isso acontece aos montes no Brasil. Por que um caso desperta mais atenção que outros?

Albertina Takiuti — Por uma série de circunstâncias, essa menina acabou superexposta. Não sei dizer exatamente o motivo que leva a mídia eleger alguns casos, embora desta vez tenha havido a questão dos manifestantes religiosos, que multiplicou a repercussão. Respeito o direito de as pessoas terem uma religião, mas não se pode chamar uma menina de 10 anos de assassina. Isso é inadmissível. Por que não foram atrás do abusador?

O Espírito Santo tem ótimos hospitais. Se o médico se nega a fazer o procedimento por "objeção de consciência" (motivos psicológicos, religiosos ou outros), cabe à direção do hospital e ao sistema de saúde buscar uma solução.

A forma como a transferiram para o hospital de Recife é inaceitável. Não é possível que não houvesse um centro de referência que a conduzisse com proteção e acolhimento. Existe um protocolo nessas situações.

Há registro de violência doméstica em todas as classes sociais. Existe uma relação entre ambiente e evento?

Situações sociais trágicas podem levar a comportamentos extremos. Na população de baixa renda, a gente tem o agravante da falta de acesso à educação, à saúde, a um projeto de futuro. Na população de alta renda, a reação ao abuso é mais rápida. Supõe-se que exista uma rede de proteção que denuncie: empregados, escola diferenciada, segurança. Mas independentemente da classe social, o que eu tenho visto é que grande parte das mulheres só denuncia o abuso quando já são adultas.

Por quê?

A maioria dos abusadores são pessoas da família. As meninas têm medo de denunciar, vergonha. Além disso, muitas mães acreditam mais no abusador do que na filha. Elas não querem acreditar.

Quando ele é um estranho, na rua, em geral a vítima tem mais facilidade para contar, porque a família encara como se fosse um "assalto".

O número de casos de gravidez em decorrência de estupros é grande?

Não na mesma proporção, porque os estupradores costumam agir com rapidez, têm dificuldade de penetração e ejaculação precoce. O prazer deles está na dominação — especialmente em relação a crianças. Por um lado, isso evita um desastre maior, embora o abuso seja o mesmo.

Qualquer menina de 10 anos está sujeita a engravidar?

É muito raro uma mulher menstruar com 8 ou 9 anos. Essa menina foi abusada durante vários anos, e isso pode tê-la levado a um estresse cumulativo. Nessa situação, ela pode ovular sem menstruar.

Do mesmo jeito que a mídia divulga amplamente um caso assim, e a população se interessa, logo tudo cai no esquecimento.

O governo deveria se comprometer a fazer um cadastro de todos esses casos, a dar a mesma atenção que dedica à covid-19. Compraram respiradores, investiram em hospitais de campanha e na pesquisa de vacinas. Acho ótimo. Mas o vírus da agressão doméstica está aí. É preciso combater com a mesma força.