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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Que o STF leve "big techs" a se subordinar à Constituição e ao Código Civil

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/05/2023 04h30

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Vou sugerir aqui um freio de arrumação no debate sobre o combate às "fake news". O ambiente ficou envenenado, e se passou a produzir mais obscurantismo do que luzes. E, para tanto, concorreu a parceria entre as gigantes da Internet e a extrema direita. Umas e outra não querem, de verdade, nenhuma forma de regulação ainda que por motivos distintos na origem, mas que se combinam na vida real. Então que seja o Judiciário, por intermédio do Supremo, a lembrar o que dizem a Constituição e o Código Civil. Se e quando a ordem na bagunça interessar também aos que lucram com o caos, então deixaremos de andar em círculos nessa questão.

Há um Recurso Extraordinário no Supremo que versa sobre a constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet -- a Lei 12.965/14. Dias Toffoli, o relator, já avisou à Presidência que seu voto está pronto. Então chegou a hora de pautar a questão. Vamos lembrar o que diz o artigo:
"Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário."

Esse artigo viola o fundamento da própria Constituição, cuja síntese, quero crer, está até excessivamente detalhada no Artigo 5º. O caput resume, para depois se estender em minudências:
"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes"

E se seguem 74 incisos e quatro parágrafos. O "neminem laedere" é um dos pilares da Constituição. Tradução literal: "a ninguém ofender" -- vale dizer: ninguém tem licença para causar danos a terceiros. O Código Civil Brasileiro, no Artigo 186, expressa o significado desse valor:
"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

Tal fundamento se completa no Artigo 927 do mesmo código, com seu eloquente Parágrafo Único:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

Assim, tem-se que:
- a Constituição consagra o princípio da responsabilidade;
- o Código Civil assegura que ninguém está livre de responder por danos causados a terceiros, bastando, note-se, que haja nexo de causalidade, pouco importando a intenção ou disposição do agente.

O TEMOR DAS EMPRESAS
A extrema-direita não quer regulação nenhuma porque pretende que as plataformas e redes sigam sendo o esgoto a céu aberto em que vicejam seus "influencers". As empresas, por seu turno, usam critérios pouco claros para eliminação de páginas ou impulsionamento de conteúdos. Seus critérios que escapam a qualquer controle democrático. Os lucros são privados. O danos, gigantescos!, são públicos. Ocorre que sua "atividade normalmente desenvolvida implica, por sua natureza, risco para os direitos de outrem", conforme está no Código Civil, direitos estes que são garantidos pela Constituição.

Se Orlando Silva eliminasse a responsabilização civil do seu texto, tudo estaria bem para as gigantes. Porque isso implicaria que não estariam obrigadas a nenhuma forma de transparência e jamais poderiam responder por danos causados pelos conteúdos criminosos que abrigam. E abrigar conteúdos de terceiros é "sua atividade normalmente desenvolvida", certo?

Não por acaso, a proposta "alternativa" do deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), que integra o lobby das empresas de Internet, elimina justamente a... responsabilização civil.

A exigência contida no Artigo 19 — tal responsabilização só seria possível no caso de descumprimento de ordem judicial — é uma aberração porque a aplicação da Constituição e do Código Civil não depende da determinação de um juiz, porque isso faria supor que, sob certas circunstâncias, este poderia tornar sem efeito as duas leis — sendo uma delas a Maior.

PRÓXIMOS PASSOS
O relator já retirou do seu texto o órgão regulador, deixando-o para etapa posterior. Consta que se pretende excluir também a remuneração às empresas produtoras de conteúdo jornalístico. Sempre defendi, como sabem, que essas coisas estivessem em propostas distintas. E, ainda assim, é possível que não se considere o suficiente.

Não sei qual é o voto de Dias Toffoli, o relator do Recurso, que vai definir a constitucionalidade ou não do Artigo 19. Não vejo caminho possível para que aquele troço seja considerado constitucional.

Que os defensores do PL avaliem a situação. Se for o caso, que se espere, então, a decisão do tribunal, e não vejo como esta possa jogar no lixo a Constituição e o Código Civil. Se e quando ficar claro que inexiste a inimputabilidade civil e que as empresas, portanto, estarão sujeitas a uma verdadeira tempestade judicial em razão das barbaridades que abrigam, talvez elas próprias se interessem por alguma forma de disciplina, subordinada aos mandamentos legais.

Sei lá se, nesse caso, as tais "big techs" começariam elas próprias, não apenas as páginas que abrigam, uma campanha contra o Supremo. Se acontecesse, candidatar-se-iam abertamente a tomar o lugar do Estado brasileiro. O confronto mudaria de patamar. A democracia tem de pagar para ver.

Nesta segunda, às 12h, vai ao ar o podcast "Reconversa". E o tema é o PL das "fake news". Eu e o advogado Walfrido Warde entrevistamos justamente Orlando Silva. A conversa foi gravada na quinta de manhã. Vai ao ar sem cortes. Não se cogitava, então, de retirar do PL a remuneração às empresas de jornalismo. Mas voltei a fazer tal defesa. Ela é justa e necessária, mas, entendo, deve ser debatida em outro PL.

Insisto: assim que o Supremo evidenciar a escandalosa ilegalidade do Artigo 19 do Marco Civil, os caminhos se abrem. Nesse caso, a lei, em vez da terra sem lei, interessará também às empresas.