Topo

Obra do Metrô na avenida Água Espraiada repete gestão Maluf e 'empurra' famílias à periferia

Guilherme Balza

Do UOL, em São Paulo

21/11/2012 06h00

“Quero agradecer também aos favelados que moravam aqui. Não teve nenhum problema. Ninguém tirou ninguém à força, não. Todos tiveram sua vida melhorada. Eles são pobres, mas são gente que tem dignidade e tem direito a viver bem. (...) Eu agradeço, porque Deus está me vendo. Quando a gente chegar lá, Deus vai dizer pra gente: ‘olha, eu vi você lá na Água Espraiada, você melhorou a vida daquele povão. Vai ficar uns dez minutinhos no purgatório e pode ir para o céu.”

Assim Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo, concluiu seu emblemático discurso de inauguração da avenida Água Espraiada --primeiro nome da atual avenida Jornalista Roberto Marinho--, em 10 de janeiro de 1996. Na ocasião, Maluf referia-se aos cerca de 30 mil moradores de favelas que foram removidos para a construção da via, inaugurada a um custo de R$ 840 milhões, considerada na época a avenida mais cara do mundo.

Família resiste à 'limpeza social' e pressão do Metrô em área de especulação imobiliária

Grandes obras viárias, ações na Justiça, especulação imobiliária e uma pressão diária do Metrô para que deixam a casa onde vive há mais de 30 anos: assim tem sido os últimos meses da família Evangelista, que reside numa edícula na avenida Santo Amaro, perto do cruzamento com a avenida Jornalista Roberto Marinho, na zona sul da capital paulista.

No imóvel de três cômodos residem Laura, 64, a mãe, Ariovaldo, 36, o filho, e Romilda, 62, a tia. Eles são alvo de uma ação de desapropriação movida pelo Metrô, que constrói na região a Linha 5-Lilás, prevista para ser entregue em 2015, a um custo total de R$ 6,9 bilhões.

Sobre a obra recaíram suspeitas de superfaturamento que provocaram a abertura da CPI do Banestado. Até hoje, Maluf e outros integrantes da prefeitura respondem por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e corrupção em razão dos supostos desvios em obras públicas. A suspeita é que o dinheiro desviado na construção da avenida foi enviado ilegalmente para paraísos fiscais. Por esta razão, Maluf é procurado pela Interpol e não pode colocar os pés em 181 países.

Ao contrário do que o então prefeito propagandeava, os despejados não viram seu direito à moradia ser respeitado: alguns tiveram que se contentar com passagens para retornar ao Nordeste; a grande maioria acabou aceitando os R$ 1.500 de indenização oferecidos pela prefeitura e só conseguiu um novo lar nos extremos da cidade, como no Jardim Educandário (zona oeste), Cidade Tiradentes (zona leste) e, sobretudo, nas regiões de mananciais da zona sul, onde é proibido construir.

Dezesseis anos depois, a história dos despejos da gestão Maluf repete-se com mais de 40 famílias que moravam há pelo menos 15 anos em imóveis cedidos pelo DER (Departamento de Estradas e Rodagem) --órgão do governo do Estado-- e em março deste ano tiveram que deixar as residências por conta das obras da Linha 5-Lilás do Metrô.

'Espraiados'

Quase todas as famílias aceitaram indenizações de R$ 85 mil, valor insuficiente sequer para dar de sinal em outro imóvel na região. Apenas três optaram por receber cerca de R$ 1.000 de aluguel social até receberem apartamentos da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), cujas obras ainda não têm prazo para começar, nem local definido.

O valor total gasto pelo Metrô com as 46 famílias chega a R$ 3,2 milhões, o que representa menos de 0,05% do custo da obra. Ao todo, foram desapropriados 349 imóveis.

Com a indenização na mão, algumas famílias migraram para cidades do interior ou retornaram para o Nordeste, como é o caso de Manoel Ribeiro, que voltou para Campina Grande (PB), e de um morador conhecido como Josevaldo, que se mudou para a Bahia, onde acabou sendo assassinado meses depois. Outras se dividiram: pais para um lado, filhos para o outro. E a maioria delas só conseguiu comprar algo em bairros distantes, na periferia.

MORADORES CRITICAM INDENIZAÇÕES

É o caso da aposentada Joana Luís Antonio, 77, que morava desde 1996 em um sobrado na avenida Santo Amaro, número 4.214, junto com a irmã de 74 anos. Após o despejo, se mudou para uma casa de três cômodos encravada em uma favela popularmente conhecida como “Morro Dunga”, na região do Jardim Miriam, extremo sul da capital. “Não consigo me acostumar. É muito longe. Lá eu tinha tudo perto.”

A trajetória de Joana é emblemática para mostrar a saga da população pobre em São Paulo na busca de um lugar para viver. Natural de Ribeirão Preto (SP), ela veio para a capital na década de 70, atrás de emprego. Arrumou trabalho como doméstica e passou a dormir na casa das patroas. Em 1979, aos 44 anos, engravidou e decidiu procurar uma casa própria. Foi parar em uma pequena favela na rua Joaquim Nabuco, no Brooklin.

  • Leonardo Soares/UOL

    A aposentada Joana Luís Antonio, 77, despejada em razão das obras da Linha 5-Lilás do Metrô. Quando soube que teria que deixar o imóvel, ela diz ter se apavorado. “Pensei em tanta coisa. ‘Meu Deus, onde vou parar’. Eu me apavorei.”; clique na imagem para ver a galeria de fotos

Em razão das enchentes, teve de deixar o lugar anos depois, transferindo-se para outra favela próxima, na avenida Portugal, comunidade que foi removida para a construção da avenida Água Espraiada em 1995. Pelo despejo, Joana e o filho de 15 anos, que tinha síndrome de Down e não andava, receberam R$ 5.000.

Sem ter para onde ir, ela recebeu um convite de uma prima, que era casada com um funcionário do DER , para que ocupassem a casa na avenida Santo Amaro, já que eles iriam se mudar e o órgão precisava de alguém para cuidar do imóvel. “Ela falou: ‘você não quer ficar aqui? Te dou para você morar. Você tá precisando, tem um filho deficiente”’. Joana aceitou a proposta sem titubear.

Ela diz que só foi notificada pelo DER para deixar a casa nove anos depois que se mudou. Na época, recebeu três propostas: deixar o local, passar a pagar um aluguel mensal ou quitar a dívida do IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) dos nove anos. Ela optou pela terceira opção e continuou morando no imóvel, junto com a irmã --ela se separou do marido, e o filho morreu em 1998.

Quando soube que teria que deixar o imóvel por conta das obras do Metrô, diz ter se apavorado. “Pensei em tanta coisa. ‘Meu Deus, onde vou parar?’. Eu me apavorei.” Com os R$ 85 mil, começou a procurar outro lugar para morar.

Depois de muita procura, decidiu comprar a casa no Morro Dunga, pela qual pagou R$ 65 mil. Os R$ 20 mil restantes gastou com a reforma da nova casa, pela qual ainda não terminou de pagar. Ela e a irmã, que tem uma doença nos rins, já querem se mudar. “Não estou gostando daqui. Tenho muito medo dos tiros à noite.”

Sem-teto

A auxiliar administrativa Julia Brito Ribas, 57, funcionária do DER há 30 anos, ainda não encontrou um novo lar. “Essa desapropriação foi terrível. Eles acabaram com a minha vida. Nunca imaginei que fosse virar uma sem-teto.”

Ela morava há 15 anos em uma casa que ficava no número 70 da rua Arizona, para onde se mudou junto com o irmão após convite de antiga moradora, também funcionária do DER, que estava saindo do imóvel. O convite tinha a mesma motivação: necessidade de alguém para cuidar do espaço e evitar a ação de vândalos. “O lugar era precário, cheio de ratos e baratas. Nem esgoto tinha. Fiz encanamento, construí sala, quarto, banheiro. Deixei tudo bonitinho.”

  • Leonardo Soares/UOL

    A auxiliar administrativa Julia Brito Ribas, 57, ainda não encontrou um novo lar após ser desapropriada pelo Metrô e mora de favor na casa de amigos. “Essa desapropriação foi terrível. Eles acabaram com a minha vida. Nunca imaginei que fosse virar uma sem-teto.”; clique na imagem para ver a galeria de fotos

A rua, relembra Julia, era um “lugar ermo” até a chegada dos moradores. “Não tinha serviço nenhum da prefeitura. Nós, moradores, cortamos o mato, arrumamos tudo, melhoramos a rua.”

Desde março deste ano, quando foi despejada, passa o dia no trabalho, na Vila Mariana (zona sul), vai para a faculdade, na Chácara Santo Antônio (também na zona sul), e dorme na casa de uma amiga, na Brasilândia (zona norte). “Imagina o que é trabalhar o dia inteiro e não ter para onde voltar?”

Em razão da recente onda de violência na capital, Julia foi convidada por uma colega de faculdade a dormir na casa dela na Vila Romana (zona oeste). “Eu estava chegando em casa 0h30, 1h, então ela me ajudou.” Antes, Julia ia a pé de casa para a faculdade, que ficava a poucos quilômetros.

Julia ainda paga uma espécie de "aluguel" para guardar os móveis, que estão em um quarto na casa de um parente. Segundo ela, móveis e eletrodomésticos ficaram destruídos na mudança, que foi bancada pelo Metrô. “Eram todos móveis planejados. Como minha casa era pequena, fiz ela toda planejada.”

A auxiliar administrativa conta que procurou o Banco do Brasil para saber se conseguiria financiar um imóvel. “Até hoje não tive resposta. Quem tem baixa renda, não tem chance”, lamenta.

Despejo após 32 anos

A aposentada Maria Aparecida Fietta, 84, morava há 32 anos em um sobrado do DER no número 3.906 da avenida Santo Amaro. Ela passou a morar no local em 1980, após o órgão desapropriar o imóvel de um antigo dono por conta de uma obra viária que nunca foi realizada.

Segundo a aposentada, na época seu marido morreu. Ela, sem condições de pagar o aluguel da casa em que vivia, na rua Joaquim Nabuco, e insatisfeita com as enchentes recorrentes, começou a procurar outro lar. Sua irmã, então funcionária do DER, procurou um diretor do órgão, que liberou o imóvel para Maria Aparecida.

A casa tinha três dormitórios, copa, cozinha, três banheiros, lavanderia, quarto de empregada e quintal. “Durante muito tempo pagamos o IPTU. Depois, suspenderam a cobrança, mas nunca vieram nos aborrecer”, afirma.

Hoje, Maria Aparecida, seu filho de 55 anos, que tem deficiência mental, e um irmão estão morando na casa da filha dela no Jardim Vaz de Lima, região do Capão Redondo, periferia da zona sul. A filha, o marido e os dois netos da aposentada, por sua vez, mudaram-se para o lava-rápido onde trabalham, para liberar a casa para a avó.

“Aqui é longe de tudo, e eu não dirijo”, lamenta. “Eles deram uma mixaria. Procuramos pelo Brooklin, Campo Belo, Santo Amaro, mas as casas são muito caras”, diz.

Água Espraiada: especulação imobiliária e grandes obras

A paisagem atual da avenida Jornalista Roberto Marinho nem de longe lembra as mais de 50 favelas que no passado se amontoavam no leito do córrego Água Espraiada, que, agora canalizado, percorre a via em toda sua extensão.

Os barracos de madeirite deram lugar a dezenas de arranha-céus residenciais de alto padrão; a região, outrora desprezada em razão das enchentes, tornou-se vedete do mercado de imóveis e alvo de especulação imobiliária. O valor do metro quadrado sextuplicou na região desde a inauguração da via, saltando de R$ 1,4 mil em dezembro 1996 para R$ 9,5 mil em outubro de 2012, de acordo com dados da Embraesp.

Hoje, a avenida assemelha-se a um canteiro de obras gigantesco: no horizonte, dezenas de prédios novos sendo construídos; além da linha 5, ergue-se sobre o córrego da avenida a Linha 17-Ouro do Metrô, que será operada por monotrilho; para os próximos anos, está prevista ainda a expansão da avenida até a rodovia dos Imigrantes, obra que irá remover mais de 30 mil moradores da região do Jabaquara.

Famíla perde empregos

Já a família de Rita Jarruy, 55, só conseguiu comprar um imóvel na Praia Grande (SP) com os R$ 85 mil que recebeu de indenização do Metrô pela casa de três dormitórios, dois banheiros, sala e cozinha, também na rua Arizona. “Saí num dia, derrubaram a casa no outro. Foi bem constrangedor.”

A família se mudou para lá em 1996, após a casa em que viviam, de propriedade de um tio, ter sido desapropriada para a construção da Água Espraiada.

De acordo com ela, viviam na casa da rua Arizona dez pessoas, ao todo. Após a desapropriação, ela morou temporariamente na casa de um familiar, enquanto procurava outro imóvel. Acabou fechando negócio na cidade do litoral, o que custou o seu emprego, em uma gráfica, e o do filho.

“Fiquei com medo de meus filhos não terem onde ficar. Acabei comprando no litoral mesmo, mas aí perdemos o emprego.” Até hoje Rita está desempregada.

Outro lado

Procurado pela reportagem do UOL, o Metrô afirmou que as indenizações pagas (R$ 85 mil) aos ocupantes dos imóveis do DER foram bem menores do que para as outras famílias desapropriadas --que receberam valores de mercado-- porque estas possuíam a escritura dos imóveis. O argumento do Metrô é que as famílias não tinham direito a uma recompensa melhor, já que não eram proprietárias dos imóveis, e que a indenização paga garante o direito à moradia.

Entretanto, de acordo com Maurício Ribeiro Lopes, promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de São Paulo, como as famílias moravam nas casas há mais de 15 anos, o fato de terem ou não a escritura do imóvel não é determinante para o valor das indenizações. “Numa situação como essa, a posse e a propriedade têm o mesmo valor jurídico.”

O Metrô sustenta ainda que nenhum dos moradores pagou impostos ou realizou benfeitorias nos imóveis, ao contrário do que afirmam os relatos dos moradores.

Segundo as diretrizes da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o direito à moradia, as famílias desapropriadas devem receber um imóvel em condições iguais ou melhores às anteriores, o que não foi cumprido pelo Metrô.

O próprio programa de reassentamento apresentado pelo Metrô prevê que as famílias removidas sejam “compensadas adequadamente pela perda de bens”, de modo que a “realocação ocorra de forma menos traumática”, conforme exigências do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento) para financiar a obra.

O programa estabelece ainda que o Metrô monitore a situação das famílias removidas, observando se elas estão adaptadas aos novos lares. Segundo os moradores, nenhuma destas exigências foi cumprida.

À reportagem, o Metrô disse, em nota, “que sempre cuidou do relacionamento com os moradores” e orientou “a população desapropriada quanto ao ajuizamento do processo de desapropriação, formas de avaliação pericial do imóvel, indenização e processos de fundo de comércio.”