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Última família resiste à pressão do Metrô para deixar área de valorização imobiliária em SP

Guilherme Balza

Do UOL, em São Paulo

21/11/2012 06h00

Grandes obras viárias, ações na Justiça, especulação imobiliária e uma pressão diária do Metrô para que deixem a casa onde vivem há mais de 30 anos: assim têm sido os últimos meses da família Evangelista, que reside numa edícula na avenida Santo Amaro, perto do cruzamento com a avenida Jornalista Roberto Marinho, na zona sul da capital paulista.

Obra do Metrô na Água Espraiada 'empurra' famílias para a periferia

Dezesseis anos depois, a história dos despejos da gestão Maluf repete-se com mais de 40 famílias que moravam há pelo menos 15 anos em imóveis cedidos pelo DER (Departamento de Estradas e Rodagem) --órgão do governo do Estado-- e em março deste ano tiveram que deixar as residências por conta das obras da Linha 5-Lilás do Metrô.

Quase todas as famílias aceitaram indenizações de R$ 85 mil, valor insuficiente sequer para dar de sinal em outro imóvel na região, e tiveram que migrar para a periferia e outras cidades

No imóvel de três cômodos residem Laura, 64, a mãe; Ariovaldo, 36, o filho; e Romilda, 62, a tia. Eles são alvo de uma ação de desapropriação movida pelo Metrô, que constrói na região a Linha 5-Lilás, prevista para ser entregue em 2015, a um custo total de R$ 6,9 bilhões.

Os Evangelistas são os últimos remanescentes de um grupo formado por 46 famílias que residiam há pelo menos 15 anos em imóveis cedidos pelo DER (Departamento de Estradas e Rodagem) --órgão do governo do Estado. Em março deste ano, as famílias tiveram que deixar as residências por conta das obras da linha 5. “Eles [o Metrô} tinham certeza que os primeiros removidos seríamos nós”, afirma Ariovaldo.

Segundo o Metrô, quase todas as famílias aceitaram indenizações de R$ 85 mil, valor insuficiente sequer para dar de sinal em outro imóvel na região. Apenas três optaram por receber cerca de R$ 1.000 de aluguel social até receberem apartamentos da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), cujas obras ainda não têm prazo para começar, nem local definido.

O valor total gasto pelo Metrô com as 46 famílias chega a R$ 3,2 milhões, o que representa menos de 0,05% do custo da obra. Ao todo, foram desapropriados 349 imóveis.

MORADORES CRITICAM INDENIZAÇÕES

As famílias que receberam os R$ 85 mil tiveram que se mudar para a periferia ou para outras cidades e acabaram se desestruturando. Temendo futuro semelhante, os Evangelistas resistem. “Já pensei em ir até a frente do prédio do Metrô e cometer suicídio. Não é a melhor maneira de resolver, mas às vezes o sangue precisa correr para sociedade respeitar mais o ser humano”, lamenta Ariovaldo.

A luta dos Evangelistas tem uma motivação extra: os três integrantes da família possuem doenças crônicas e se tratam em hospitais que ficam em bairros centrais da capital. Romilda é cadeirante e epiléptica; Laura tem câncer recorrente nos seios e é cardiopata; já Ariovaldo luta há sete anos contra um câncer no lobo direito do cérebro.

A renda mensal da família não ultrapassa os R$ 2.000. Ariovaldo sobrevive dando aulas particulares de italiano, idioma que aprendeu quando foi seminarista. Já Laura e Romilda são pensionistas.

O valor do metro quadrado na região do Brooklin gira em torno de R$ 9.500, segundo dados da Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio). Para comprar um imóvel na mesma região, com área útil semelhante ao da edícula em que moram --cerca de 60 metros quadrados-- a família teria que desembolsar pelo menos R$ 600 mil. Ou seja, além dos R$ 85 mil oferecidos pelo Metrô, precisariam de mais R$ 515 mil.

Comprometendo apenas 30% da renda total –aproximadamente R$ 600--, patamar máximo permitido pela Caixa Econômica Federal nos financiamentos, os Evangelistas só conseguiriam quitar o imóvel daqui a 83 anos, isso sem contar o valor que pagariam em juros.

Antigo alojamento

A edícula onde moram faz parte de um antigo alojamento para funcionários do DER que vinham de outras cidades para fazer tratamento no Hospital do Servidor. A família se mudou da Vila Císper, na zona leste, para o local no início da década de 80, quando o marido de Laura, chamado Teotônio Alves, que era servidor do DER, foi escalado para morar no local e trabalhar como zelador da hospedagem.

  • Leonardo Soares/UOL

    A auxiliar administrativa Julia Brito Ribas, 57, ainda não encontrou um novo lar após ser desapropriada pelo Metrô e mora de favor na casa de amigos. “Essa desapropriação foi terrível. Eles acabaram com a minha vida. Nunca imaginei que fosse virar uma sem-teto.”; clique na imagem para ver a galeria de fotos

Na época da mudança, o espaço estava abandonado. Teotônio e família trabalharam duro e restauraram o local, que passou a receber os servidores do órgão. Na década de 90, o alojamento acabou sendo desativado, mas a família permaneceu morando ali, mesmo após a morte de Teotônio, em 2001.

Durante as três décadas o DER permitiu que os Evangelistas permanecessem no local para evitar que o espaço fosse alvo de vandalismo e de usuários de drogas. Após a desativação, a família, que tinha acesso a toda área do alojamento (cerca de 2.500 metros quadrados), progressivamente foi restringida à edícula onde vive hoje, já que o espaço foi cercado por muros.

Agora, os Evangelistas estão rodeados por prédios em construção e por canteiros de obras do metrô. Espremidos, lidam dia e noite com o barulho ininterrupto das máquinas e homens trabalhando. Depois que as obras do metrô começaram, parte do muro que isolava o terreno do DER foi destruído, e o espaço passou a ser frequentado por usuários de crack e ladrões de fio de cobre. Por conta das invasões, a família chegou a ficar sem água e luz por mais de duas vezes nos últimos meses.

Segundo Ariovaldo, só a partir de 2010 começaram a chegar ofícios extrajudiciais do DER para que a família deixasse o espaço. No início, nem o órgão, nem o Metrô ofereciam qualquer indenização para a família. Após pressão dos moradores e uma decisão judicial, a empresa passou a oferecer os R$ 85 mil.

Apesar da resistência, a família conta os dias para deixar a propriedade: em setembro último, uma decisão judicial determinou que eles aceitassem os R$ 85 mil e deixassem o imóvel em 20 dias, assim que recebessem a intimação do oficial de Justiça.

Os Evangelistas conquistaram um respiro no final do outubro, após o juiz do processo rever a decisão e convocar uma audiência para 29 de novembro. É última esperança da família em conquistar uma indenização melhor. "É utopia? É, mas a utopia pode encontrar um lugar no espaço. Utopia não é só ilusão, é um lugar que ainda não existe, mas pode existir”, sonha Ariovaldo.

  • Leonardo Soares/UOL

    A aposentada Joana Luís Antonio, 77, despejada em razão das obras da Linha 5-Lilás do Metrô. Quando soube que teria que deixar o imóvel, ela diz ter se apavorado. “Pensei em tanta coisa. ‘Meu Deus, onde vou parar’. Eu me apavorei.”; clique na imagem para ver a galeria de fotos

Sem indenização

Além dos Evangelistas, a família da orientadora social Maria Aparecida Gomes, 59, briga na Justiça com o Metrô para ser recompensada pela remoção. Das 46 famílias que residiam nas casas do DER, apenas a dela não recebeu qualquer indenização pela casa em que vivia no número 4.162 da avenida Santo Amaro. O imóvel, que já foi demolido, tinha quatro dormitórios, duas salas, três banheiros e dois quintais.

A família de Cida foi transferida para lá pela prefeitura, em 1996. Eles residiam em um galpão na favela do Jardim Edite, onde Cida coordenava uma cooperativa de catadores de material reciclável, entre outros projetos sociais. Com a construção da avenida Água Espraiada, a favela foi removida.

A família recebeu o imóvel do DER por estar em condições de vulnerabilidade --Cida tem um filho especial, com sequelas de uma paralisia cerebral e epilepsia, que tinha apenas quatro anos na época da remoção. Já Cida tem uma doença degenerativa nos ossos e se aposentou por invalidez.

De acordo com ela, em nenhum momento o Metrô disponibilizou assistentes sociais para tratar das famílias. “Eles fizeram é tortura psicológica, desde o início. Diziam para aceitarmos o que eles estavam propondo caso contrário o trator passaria por cima de tudo”, afirma.

O Metrô diz que Cida não recebeu indenização porque desocupou o imóvel sem comunicar o órgão, o que ela nega. Segundo a orientadora social, ela deixou a casa depois que foi comunicada pelo oficial de Justiça que deveria sair do local.

“Estava insustentável ficar lá. Depois que demoliram o bingo que ficava do lado de casa, nossa vida virou um inferno. ‘Nóias’ ficavam lá usando drogas do nosso lado e entravam dentro da nossa casa. Também parecia que nossa casa iria cair por conta das obras que o Metrô começou a fazer”, explica.

De acordo com Cida, o Metrô prometeu, em audiência na Assembleia Legislativa, que iria adquirir para os removidos imóveis na mesma região. “Desde 2006, quando soube da obra, apresentei várias opções de casas que eles poderiam comprar, mas não foram atrás”, questiona.

Agora, Cida exige que o Metrô pague pelo menos três indenizações de R$ 85 mil, já que ela morava com uma filha maior de idade e outro filho, já casado, além do caçula.

Água Espraiada: especulação imobiliária e grandes obras

A paisagem atual da avenida Jornalista Roberto Marinho nem de longe lembra as mais de 50 favelas que no passado se amontoavam no leito do córrego Água Espraiada, que, agora canalizado, percorre a via em toda sua extensão.

Os barracos de madeirite deram lugar a dezenas de arranha-céus residenciais de alto padrão; a região, outrora desprezada em razão das enchentes, tornou-se vedete do mercado de imóveis e alvo de especulação imobiliária. O valor do metro quadrado sextuplicou na região desde a inauguração da via, saltando de R$ 1,4 mil em dezembro 1996 para R$ 9,5 mil em outubro de 2012, de acordo com dados da Embraesp.

Hoje, a avenida assemelha-se a um canteiro de obras gigantesco: no horizonte, dezenas de prédios novos sendo construídos; além da linha 5, ergue-se sobre o córrego da avenida a Linha 17-Ouro do Metrô, que será operada por monotrilho; para os próximos anos, está prevista ainda a expansão da avenida até a rodovia dos Imigrantes, obra que irá remover mais de 30 mil moradores da região do Jabaquara.

Outro lado

Procurado pela reportagem do UOL, o Metrô afirmou que as indenizações pagas (R$ 85 mil) aos ocupantes dos imóveis do DER foram bem menores do que para as outras famílias desapropriadas --que receberam valores de mercado-- porque estas possuíam a escritura dos imóveis. O argumento do Metrô é que as famílias não tinham direito a uma recompensa melhor, já que não eram proprietárias dos imóveis, e que a indenização paga garante o direito à moradia.

Entretanto, de acordo com Maurício Ribeiro Lopes, promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de São Paulo, como as famílias moram nas casas há mais de 15 anos, o fato de terem ou não a escritura do imóvel não é determinante para o valor das indenizações. “Numa situação como essa, a posse e a propriedade tem o mesmo valor jurídico.”

O Metrô sustenta ainda que nenhum dos moradores pagou impostos ou realizou benfeitorias nos imóveis, o que não corresponde aos relatos dos moradores.

Segundo as diretrizes da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o direito à moradia, as famílias desapropriadas devem receber um imóvel em condições iguais ou melhores às anteriores, o que não foi cumprido pelo Metrô.

O próprio programa de reassentamento apresentado pelo Metrô prevê que as famílias removidas sejam “compensadas adequadamente pela perda de bens”, de modo que a “realocação ocorra de forma menos traumática”, conforme exigências do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento) para financiar a obra.

O programa estabelece ainda que o Metrô monitore a situação das famílias removidas, observando se elas estão adaptadas aos novos lares. Segundo os moradores, nenhuma destas exigências foi cumprida.

À reportagem, o Metrô disse, em nota, “que sempre cuidou do relacionamento com os moradores” e orientou “a população desapropriada quanto ao ajuizamento do processo de desapropriação, formas de avaliação pericial do imóvel, indenização e processos de fundo de comércio.”