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Custo de vida e negação de direitos aos pobres dividem o Rio dos arrastões

À esq, banhistas na praia de Ipanema na zona sul do Rio; à dir, PM do Rio apreende 24 menores que estavam em ônibus rumo à zona sul - Montagem UOL
À esq, banhistas na praia de Ipanema na zona sul do Rio; à dir, PM do Rio apreende 24 menores que estavam em ônibus rumo à zona sul Imagem: Montagem UOL

Gustavo Maia

Do UOL, no Rio

25/09/2015 06h00

Com o acentuado aumento no custo de vida, o Rio de Janeiro passou a ocupar o topo das listas de cidade mais caras para viver no Brasil nos últimos anos. O cenário econômico aliado à falta de direitos sociais básicos por uma parcela da população carioca foram apontados por especialistas como motivações para a divisão da cidade evidenciada pelos arrastões ocorridos no último fim de semana nas praias da zona sul.

Cinquenta anos atrás, a cientista política norte-americana Elizabeth Leeds desembarcou na cidade ao lado do marido, o antropólogo Anthony Leeds, e os dois iniciaram visitas a dezenas de favelas. As pesquisas deram origem, em 1978, ao livro “Sociologia do Brasil Urbano”, considerado um clássico do estudo sobre o país. De volta à cidade esta semana, a pesquisadora disse acreditar que parte da violência nas praias da zona sul se deve aos apelos da sociedade de consumo.

"Eu, como estrangeira, fico chocada com os preços aqui no Brasil e no Rio de Janeiro. É claro que essa dinâmica existe há muito tempo, mas hoje em dia os preços são absurdos, obscenos e também contribuem para aumentar a tensão", declarou. A segregação entre autores e vítimas dos arrastões, opina Leeds, é resultado de uma política pública que não atende as necessidades sociais dos jovens de periferia. "Eu sempre falo que o Estado esteve ausente durante muitos anos e que a única parte que estava presente era a polícia. E de uma forma muito negativa", disse a cientista política.

A percepção da norte-americana é compartilhada por dois historiadores ouvidos pela reportagem do UOL nessa quarta-feira (23), durante o seminário "O Rio que se queria negar: as favelas do Rio de Janeiro", promovido pela Fiocruz.

"Se a gente pensa uma democracia a partir do acesso a direitos, então um dos direitos que a gente não pode negar por estar numa sociedade capitalista é o direito ao consumo. Os jovens querem consumir. Mas estamos muito aquém desse processo republicano, democrático", argumentou Cláudia Ribeiro da Silva, coordenadora do Museu da Maré, que fica no complexo de favelas de mesmo nome.

As pessoas têm cada vez mais acesso a informações, a outras realidades, e também querem o que cabe a elas. O discurso que vem do poder público é o de acesso a direitos, mas na prática as pessoas não vivenciam isso.

Cláudia Ribeiro da Silva, historiadora

"Tudo isso é atravessado por outros fatores como tráfico de drogas, desestruturação de famílias, habitação, educação. Em algum momento, a coisa vai explodir, porque você não tem como conter isso o tempo todo", complementou a historiadora.

Para Mauro Amoroso, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a violência cometida pelos jovens da periferia pode ser entendida como uma reação ao fechamento do "direito à cidade". Ele se refere à decisão da Prefeitura do Rio de alterar trajetos de coletivos na cidade, com o objetivo de "racionalizar as linhas", a partir de outubro. A medida tem sido encarada com desconfiança por moradores da zona norte carioca, já que, das 48 linhas que serão encurtadas e extintas, 18 fazem o trajeto direto da região até as praias da zona sul.

"Não é pura coincidência. Acho que foi uma reação inconsciente, uma revolta interna", diz. "Tenta-se impedir o acesso àquilo que é vendido como Cidade Maravilhosa. E isso inclusive é uma construção. O Rio nunca foi uma cidade maravilhosa, é apenas um balneário como outro qualquer", declarou Amoroso.

Desde o início deste ano, a ida de jovens da periferia às praias da zona sul em fins de semana de sol passou a ser interrompida no meio do caminho por operações da Polícia Militar. Nas blitzes, os ônibus que levavam os jovens da periferia eram parados durante o trajeto. Muitas vezes, eles foram impedidos de seguir viagem, ainda que não tivessem cometido crimes. Em um só dia, em agosto, 150 adolescentes foram apreendidos. Questionado pela Defensoria Pública do Rio, este tipo de ação foi proibido pela Justiça no último dia 10, o que gerou reclamações do secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame.

Uma parte da sociedade carioca perdeu o significado de uma palavra muito forte que é a empatia. O poder de se reconhecer no outro. E aí entra a questão do 'eu pago caro, então você não pode entrar no meu sonho dourado'. O problema é que é só um sonho. A realidade não tem paz. 

Mauro Amoroso, professor da Uerj

Em uma frase, Elizabeth Leeds sintetiza o que acredita ser a raiz do problema: "o acúmulo da falta de políticas públicas adequadas ao longo dos anos e da constante agressão por parte [dos agentes] da segurança pública criou um clima de confronto, de raiva, de revolta".