'Dói ser chamado de inútil': denúncias de violência contra idosos sobem 47%
Geraldo (nome fictício), 74, mora com a filha em São Paulo desde 2020, quando a pandemia começou. Porém, desde então, a relação dele com o neto, 20 - que sempre foi de carinho -, se deteriorou.
Eu mexi na rotina da casa e entendo que isso incomoda. Dói ser sempre chamado de inútil, de chato, ainda mais por uma pessoa que amo e vi nascer, mas eu relevo. Ele é só uma criança.
O que aconteceu:
As denúncias de violência contra pessoas idosas cresceram 47% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período de 2022. Somente nos seis primeiros meses de 2023, o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, recebeu 65.331 denúncias de violência cometidas contra esse público, contra 44.458 no primeiro semestre de 2022. Pessoas idosas são o segundo grupo que mais sofre abusos, ficando atrás apenas das crianças e dos adolescentes.
Foram registradas 386.642 violações de direitos, como violências físicas, psicológicas, patrimoniais, sexuais, abandono e discriminação. No mesmo período do ano passado, eram 223.951. Cada denúncia pode ter mais de um tipo de violação.
As violações psicológicas são as mais comuns. Elas ocorrem em atos como agressões verbais, tratamento com menosprezo ou qualquer ação que traga sofrimento emocional ou afete a autoimagem e autoestima da pessoa. Só em 2023 já foram registradas mais de 120 mil violações deste tipo.
A população tem ficado mais velha. O percentual de pessoas com mais de 60 anos saltou de 11,3% para 15,1%. Ao mesmo tempo, o percentual de pessoas com menos de 30 anos caiu de 49,9% em 2012, para 43,3% em 2022. O médico e gerontólogo Alexandre Kalache diz que o Brasil será um dos três países que mais rapidamente envelhecerá até 2050. "Os idosos de 2050 já são adultos hoje. Já estamos vivendo o tempo de nos prepararmos", diz ele, que ressalta a necessidade de políticas públicas consistentes.
Violência é comum dentro de casa, dizem especialistas
Apesar do aumento de registros em relação ao ano anterior, especialistas estimam que os dados ainda são subestimados. Isso se deve porque a violência é geralmente cometida por familiares, o que dificulta que a denúncia seja feita, explica Marcela Carinhato Almeida Prado de Castro Valente, presidente da Comissão de Direitos da Pessoa Idosa da OAB-SP.
"O idoso percebe [que está sendo vítima de violência], mas não quer denunciar o próprio filho. Um fato curioso é que muitos dos que fazem a denúncia retiram quando ficam sabendo que aquilo que o familiar cometeu contra ele é crime. Eles relatam que queriam que a pessoa só levasse um susto", relata a advogada.
Geraldo diz que nunca cogitou denunciar o neto e desabafa com os amigos sobre a situação. "Minha filha passa muito tempo fora de casa e nem sonha que o menino fala essas coisas pra mim. Na pandemia foi pior, porque eu não podia sair. Apesar da idade, eu me viro bem sozinho e gosto de passear, isso ajuda a driblar os problemas."
Kalache, que dirigiu o Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da OMS (Organização Mundial da Saúde), faz coro sobre os números não refletirem a realidade e a dificuldade nas denúncias. "Acho que ainda é a pontinha do iceberg. É difícil denunciar um filho, um neto, a pessoa está no seio da família. Você varre aquilo pra debaixo do tapete e nega."
'Dinheiro estava sumindo'
Vera (nome fictício), 73, vive com o único filho na capital paulista. Sem familiaridade com a tecnologia, deixou aos cuidados dele o cartão bancário que dá acesso a sua aposentadoria, mas tomou um susto ao se deparar com um empréstimo em seu nome sem o seu consentimento.
Como não sei mexer na internet, eu deixo ele tomar conta dessas coisas. Fiquei chateada porque só descobri esse empréstimo quando percebi que o dinheiro estava sumindo e fui ao banco perguntar o que estava acontecendo. Uma amiga minha me falou que ele não podia ter feito isso, que é errado, mas é meu filho, não um bandido.
Rose Costa, gerente de uma organização que atende pessoas idosas em vulnerabilidade em convênio com a Prefeitura de São Paulo, diz lidar frequentemente com pessoas idosas vítimas de violência financeira.
É muito comum vermos situações em que a aposentadoria do idoso custeia a família toda. E como hoje todos os pagamentos são feitos digitalmente e a ida do idoso ao banco é complicada, eles nos relatam que o dinheiro some de suas contas, ou seja, pessoas próximas usam o dinheiro sem consentimento. Rose Costa, gerente da CAMP Pinheiros
Rose explica que no centro-dia para idosos da entidade social CAMP Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, os frequentadores são orientados em relação a serviços e seus direitos. Quando casos de violência são detectados, um relatório é encaminhado ao CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social) e Núcleo de Proteção Jurídica, que passa a acompanhar o caso. Também são feitas reuniões com as famílias para orientá-las.
Violência contra a pessoa idosa é crime; veja como denunciar
O Estatuto da Pessoa Idosa prevê pena de prisão de dois meses a um ano e multa a quem expor a perigo a integridade e a saúde física ou psíquica da pessoa idosa. Se o fato resultar lesão corporal grave, a pena é de um a quatro anos de prisão. Em caso de morte, de quatro a 12 anos.
Denúncias de violências podem ser feitas pelo Disque 100. O canal de atendimento coordenado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos é gratuito, sigiloso e está disponível 24 horas por dia.
Além de ligação gratuita, os serviços podem ser acessados por meio do site da Ouvidoria, aplicativo Direitos Humanos, Telegram (digitar na busca "Direitoshumanosbrasil") e WhatsApp (61) 99611-0100. O canal também possui atendimento em Libras.