Tortura, facções e lotação: prisões de SC são 'bomba prestes a explodir'
Com troca recente de comando, o sistema prisional e socioeducativo de Santa Catarina enfrenta uma crise dentro e fora dos muros das unidades. Ofício elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura (MNPCT) em agosto — ao qual o UOL teve acesso — indica proposta de transferências indevidas, denúncias de torturas e condições insalubres nas celas. O governo diz que repudia "quaisquer violações".
O que aconteceu
A Secretaria da Administração Prisional e Socioeducativa de Santa Catarina propôs a transferência ilegal de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa do Case (Centro de Atendimento Socioeducativo) de Joinville para a unidade prisional de São Francisco do Sul que abriga adultos. A intenção — contrária às diretrizes do ECA (Estatudo da Criança e Adolescente) — foi revelada em reunião entre representantes da sociedade civil, do Mecanismo, da pasta, do Ministério Público Estadual e da Defensoria Pública em 30 de junho desse ano.
Após o encontro, o ofício do MNPCT com denúncias foi enviado aos governos estadual e federal. As queixas incluem a estrutura: a mesma secretaria é responsável por presídios e pelas unidades socioeducativas, que abrigam adolescentes.
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Ao UOL, a secretaria afirmou que as "supostas violações aos direitos dos internos foram minuciosamente verificadas" e que as unidades recebem "frequentemente" inspeções e visitas de órgãos de controle externo, com os quais mantém contato para "atendimento das demandas". A pasta diz ainda que promove ajustes, "quando necessários".
Essa situação é completamente violadora dos direitos e evidencia um dos principais problemas da SAP atender o sistema prisional e socioeducativo. Não é exagero dizer que é uma bomba prestes a explodir.
Barbara Suelen Coloniese, perita do MNPCT
A SAP realizou este ano reuniões com a equipe do Mecanismo Nacional de Prevenção Contra a Tortura, ressaltando os inúmeros esforços que estão sendo realizados no aprimoramento do sistema prisional e socioeducativo catarinense junto aos órgãos de controle e fiscalização, responsáveis em manter o respeito e direitos do ser humano.
Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa de SC
O MNPCT também realizou inspeções em unidades socioeducativas e teve acesso a relatos de tortura contra adolescentes. Em abril, jovens que cumpriam medida no Case de Joinville afirmaram que eram vítimas da prática conhecida como "pacote". "Eles relataram que se deitavam no chão, algemados pelas mãos e pernas, e apanhavam dos agentes, sem possibilidade de defesa. Todos os adolescentes disseram terem passado pela prática", diz a perita.
Outra denúncia se refere a presos adultos transferidos para trabalhar em reformas do sistema socioeducativo. Uma funcionária que trabalha no governo estadual e não quis se identificar disse que "no discurso, eles dizem que são presos selecionados". A funcionária afirma que, na prática, como a maior parte dos presídios do estado têm presos vinculados ao PGC (Primeiro Grupo Catarinense) ou ao PCC (Primeiro Comando da Capital), há risco de aliciamento.
Entre os meses de maio e junho, cinco presos foram levados para trabalhar em uma reforma na unidade Case Criciúma. "O risco de aliciamento é muito claro, eles [os presos] se comunicam só com o olhar. Essa proximidade dos presos adultos com os jovens é muito nociva", diz a funcionária que prefere não se identificar.
O UOL também recebeu vídeos de presos relatando as condições insalubres dentro de uma unidade prisional no interior. Eles dizem que foram agredidos — um deles mostra manchas pelo corpo — e exibem colchões velhos, celas sem iluminação e sem água, entre outros problemas.
Na semana passada, o governador Jorginho Mello (PL) decidiu pela substituição da chefia da Secretaria da Administração Prisional e Socioeducativa. "A necessidade de uma mudança na pasta ocorre após problemas na gestão dos então secretários", diz nota enviada à reportagem.
O policial penal Carlos Antonio Gonçalves Alves foi nomeado secretário na sexta (25). Joana Mahfuz Vicini assumiu a vaga de secretária-adjunta. Edenilson Schelbauer e Neuri Mantelli, que ocupavam os respectivos cargos, tinham sido dispensados na segunda (21).
Quando existe uma engrenagem falha, o sistema é alimentado até chegar à falência, numa perspectiva de massacre. Temos um sistema insalubre, superlotado e o único estado do país que não permite que os familiares levem as 'sacolas', os jumbos [pacotes com comida e itens de higiene].
Barbara Suelen Coloniese, perita do MNPCT
As unidades prisionais atuam diariamente para manter a ordem e a segurança com ações que visem a ressocialização dos apenados, trabalho em que o Estado de Santa Catarina é referência nacional, visando sempre resguardar os direitos das pessoas privadas de liberdade, garantindo, principalmente, a integridade destes e repudiando quaisquer violações.
Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa de SC
Transferência de jovens e tortura
Para justificar a proposta de transferência de adolescentes de Joinville para a prisão em São Francisco do Sul, o governo alegou que a unidade socioeducativa seria reformada. Segundo a perita do Mecanismo, o Case de Joinville está com a estrutura comprometida — mas a solução não é levar os jovens para uma unidade que abriga adultos.
O acesso à unidade [Case] é muito difícil, quando fomos fazer a inspeção estava chovendo muito e, mesmo com um carro da PRF, não conseguimos chegar. Servidores e familiares têm que ir caminhando.
Barbara Suelen Coloniese, perita do MNPCT
Segundo a funcionária do governo que não quis se identificar, há vazamentos de água pelas paredes. Alguns adolescentes da unidade chegam a ficar até 22 horas dentro dos quartos, diz.
Outra prática de tortura relatada pelos jovens é conhecida como "cadeirinha". Nela, o adolescente é colocado no chão e os agentes se sentam sobre o corpo dele durante longos períodos.
São Francisco do Sul é uma unidade prisional que já abriga adultos e não pode ser adaptada para o sistema socioeducativo, segundo Fernanda Menezes, coordenadora do Núcleo Especializado de Política Criminal e Execução Penal da Defensoria Pública de Santa Catarina. "Precisaria ser construída uma nova unidade, com outra estrutura física."
Fontes ouvidas pela reportagem que atuam em inspeções afirmam que essa é uma das prisões com a presença de facções criminosas. Por isso, citam o risco de aliciamento de jovens — inclusive no contato com os presos que participaram da reforma na unidade socioeducativa de Joinville.
A desorganização interna e as condições de insalubridade estão gerando uma situação de caos. O sistema prisional vive um limite insuportável. É possível que repita o que assistimos o que ocorreu no Rio Grande do Norte.
Fernanda Menezes, coordenadora do Nupep (Núcleo Especializado de Polícia Criminal e Execução Penal) da Defensoria Pública de Santa Catarina
Facções, agentes temporários e insalubridade
O ofício assinado pelo MNCPT, ao qual a reportagem teve acesso, manifesta preocupação com o "baixo efetivo" de policiais penais e profissionais de áreas técnicas nos presídios do estado. Segundo o órgão, o número de agentes temporários chega a 90% em algumas regiões do estado.
O problema dos agentes temporários, segundo a perita, é que a fragilidade do vínculo trabalhista pode impactar na segurança que o funcionário tem para fazer eventuais denúncias. "A pessoa prefere não relatar um tratamento desumano e degradante porque pode ser mandada embora no dia seguinte."
O órgão também reclamou da retirada de conteúdos relacionados a Direitos Humanos nos cursos de formação de servidores penais no estado.
Questionada pelo UOL, a Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais) afirmou que "o assunto não faz parte do universo de responsabilidades desta Senappen". O órgão afirma ser responsável pelo Sistema Penitenciário Federal. Segundo a pasta, os principais objetivos são isolamento das lideranças do crime organizado, cumprimento rigoroso da Lei de Execução Penal e custódia.
Metade dos presídios do estado está interditada por condições de insalubridade e superlotação, segundo a defensora pública Fernanda. "Muitas unidades não têm laudos do Corpo de Bombeiros. Os corredores são abafados, celas com mofo por todo lado, sem circulação adequada de ar e ausência de protocolos para situações de crise."
Segundo fontes ouvidas pela reportagem, apenas duas unidades não têm presença de integrantes de facções criminosas — são aquelas onde cumprem pena presos condenados por crimes sexuais. O estado tem 53 unidades prisionais.
O déficit de vagas no sistema fechado é de aproximadamente 5 mil vagas, de acordo com a Defensoria. No sistema semiaberto é de cerca de 2 mil. No total, são mais de 24 mil presos em Santa Catarina.
Uma forma de tortura verificada em unidades do sistema prisional é o uso indiscriminado de spray de pimenta em ambientes fechados. Segundo o MNPCT, presos são colocados dentro das celas e o gás é aplicado.
Outra forma de violação é o jejum forçado com a ausência das sacolas de alimentos — com o grande espaçamento entre as refeições, há presos que relatam que ficam com fome ao longo do dia. "As sacolas foram suspensas na pandemia de covid-19 e ainda não voltaram a ser permitidas. Metade das unidades permite o pecúlio [auxílio financeiro], mas a outra metade não", diz Fernanda.
Procurada pelo UOL, a secretaria não se manifestou sobre o déficit de vagas e sobre as denúncias de maus-tratos, insalubridade e tortura.