Gestão Tarcísio paga bico para policiais vigiarem tornozeleiras eletrônicas
Policiais civis e militares de São Paulo receberão o chamado "bico oficial" para monitorar presos provisórios com tornozeleiras eletrônicas após passarem pelas audiências de custódia.
O projeto-piloto, criado pela SSP (Secretaria de Segurança Pública) do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), estimula o desvio das funções de policiamento ostensivo e investigação e agrava a sobrecarga de trabalho, segundo agentes de segurança e defensores públicos ouvidos pelo UOL. A pasta nega que haja desvio de funções e acúmulo de tarefas.
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O que é o projeto do governo de SP
Policiais civis e militares têm feito a instalação dos equipamentos em presos provisórios e até o monitoramento das imagens. O trabalho começou após um acordo entre a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) e o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Presos provisórios começaram a receber as tornozeleiras em 11 de setembro.
As tornozeleiras eletrônicas são instaladas por dois policiais militares no Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo. Segundo o assessor da coordenadoria de Políticas Públicas da SSP, major Rodrigo Vilardi, o monitoramento do sistema começou nesta semana e é feito pelo Copom (Centro de Operações da Polícia Militar). "São policiais que já desenvolviam atividades de despacho no Copom", afirma.
Acompanhar presos já monitorados eletronicamente pode ser considerado desvio de função. Segundo o coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Diego Rezende Polachini, o código de processo penal prevê a monitoração eletrônica para que exista a fiscalização a distância.
"A polícia serve para a garantia de segurança pública, e não fiscalização de ilícito administrativo." O defensor público afirma que é "dinheiro público mal gasto" quando a polícia deixa o policiamento ostensivo e a investigação para acompanhar pessoas já monitoradas por um dispositivo eletrônico.
Presos provisórios com tornozeleiras eletrônicas poderiam ser fiscalizados por policiais penais. O professor de Segurança Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani, afirma que em outros países o monitoramento de pessoas privadas de liberdade é feito por um "agente de condicional". "O ideal seria esse profissional, mas para isso seria necessário criar uma nova carreira. Um policial penal teria mais familiaridade com a atividade."
A SSP nega que haja desvio de função dos agentes de segurança. Para o major Vilardi, o monitoramento faz parte da "manutenção da ordem pública". "Não é um desvio de função de policiais militares e civis porque esses indivíduos [presos provisórios] têm condições legais a cumprir. Quando essas condições são violadas, a sociedade é colocada em risco".
O projeto também prevê que juízes tenham acesso às imagens do sistema de monitoramento. "Foi criado um espaço virtual específico para agilizar esse acesso do judiciário a todo tipo de prova", informa Vilardi.
O defensor Polachini afirma que a rapidez no acesso às imagens deveria ocorrer sem a necessidade desse projeto-piloto. "Deveria ser uma obrigação da polícia para garantir a transparência."
"Bico oficial" e sobrecarga de policiais
O programa prevê a possibilidade de participação de policiais por meio de Dejem e Dejec (Diária Especial por Jornada Extraordinária de Trabalho Policial Militar e Civil). As jornadas são conhecidas como "bicos oficiais" pagos pelo governo aos agentes.
A resolução prevê essa possibilidade [de bico oficial], mas não estão empregando no momento.
Major Rodrigo Vilardi, assessor da coordenadoria de Políticas Públicas da SSP
"Isso, inevitavelmente, aumentará a jornada dos profissionais", rebate o delegado Edson Pinheiro dos Santos Junior, um dos diretores do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp). Segundo ele, o déficit de policiais civis no estado hoje é de 38%.
O nosso maior problema é o déficit de policiais. O mesmo agente realiza três, quatro funções, o que acarreta problemas de saúde mental com o passar do tempo. Por falta de pessoal, o policial acaba fora da função específica, mas não fora da função policial.
Edson Pinheiro dos Santos Junior, delegado e diretor do Sindesp
"Haverá uma sobrecarga voluntária", declara o diretor do Sindicato dos Delegados. Segundo Santos Júnior, a falta de profissionais e a quantidade de trabalho fazem com que o período mínimo de descanso seja descumprido.
Um policial que aceita trocar seu dia de folga por um plantão de 8 horas recebe cerca de R$ 200. Agentes ouvidos pela reportagem relatam que "bico" é uma prática constante para complementar a renda.
O "bico oficial" possibilita, por uma remuneração mais baixa do que no extraoficial, que o agente trabalhe com uniforme, viatura e acione o apoio. Já na modalidade extraoficial, as condições são ainda mais precarizadas, com jornadas exaustivas e sobrecarga de funções, mas os valores são mais altos, segundo os policiais.
Violência doméstica, tráfico e furto
Das 33 tornozeleiras instaladas, 13 foram em presos provisórios acusados de violência doméstica. Os demais detidos respondem por delitos como tráfico, roubo e outros. "Nesses casos, o descumprimento exige mais atenção porque requer um acionamento imediato".
O projeto permite que os juízes determinem quais presos serão monitorados com tornozeleiras. O termo foi assinado pelas pastas do governo Tarcísio e pelo TJ-SP no dia 4 de setembro.
Policiais civis das delegacias terão acesso ao sistema de monitoramento dos presos provisórios, segundo o major Vilardi. Inicialmente, foram disponibilizadas 200 tornozeleiras pela SAP, mas há 8 mil equipamentos contratados que poderão ser utilizados, relata o assessor de coordenação de Políticas Públicas da SSP.
O monitoramento por parte dos agentes de segurança vai acontecer dentro da escala de trabalho, declara Vilardi. "Não existe uma gratificação, nem um benefício específico. Eles não recebem nada a mais para participar do projeto." Além dos agentes da SSP, também compõem o projeto policiais da assessoria do TJ-SP.
O objetivo não é colocar um monte de policiais olhando uma tela, o sistema já faz isso. O principal ponto do programa é que todos os policiais do estado vão passar a ter essa informação para ver se o indivíduo está se aproximando e poder agir de imediato.
Major Rodrigo Vilardi
O que dizem policiais sobre o "bico"
"O bico oficial é voluntário, mas não temos opção." O UOL conversou com agentes pediram para não serem identificados na reportagem.
"Faz parte da saúde de um policial ter folga. Não é um benefício, é preservar a saúde mental", declarou um policial civil que atua em São Paulo.
"Quem tem os melhores contatos pega os melhores bicos extraoficiais, que pagam mais", declarou outro policial. Segundo eles, a maior parte dos agentes que aceita trabalhos extras está preocupada com o endividamento. "O bico acaba sendo incorporado."
Outro policial consultado afirma que iniciar um projeto como esse sem aumentar o número de postos de trabalho cria sobrecarga. "O governo sustenta que houve queda nos índices de criminalidade, mesmo sem a quantidade necessária de policiais. É um projeto mal desenhado."