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Mães de Acari: 33 anos após chacina, Estado reconhece só 4 das 11 mortes

Vera Lúcia Leite e Marilene Lima de Souza, "mães de Acari", morreram sem ver o desfecho do caso dos mortes das filhas Imagem: Luciana Whitaker - 19.nov.1995/Folha Imagem

Do UOL, em São Paulo

09/10/2023 04h00Atualizada em 09/10/2023 07h22

Trinta e três anos após a Chacina de Acari, no Rio, só 4 das 11 vítimas tiveram certidões de óbito emitidas pelo Estado brasileiro. Na próxima quarta-feira (12), a Corte Interamericana de Direitos Humanos realiza a primeira audiência de julgamento sobre o caso.

O que aconteceu

As certidões de óbito de Luiz Carlos Vasconcelos, Luiz Henrique Euzébio, Moisés dos Santos Cruz e Rosana Lima de Souza, porém, trazem dados divergentes. Os papéis foram emitidos apenas em 2010 — 20 anos após o crime

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O documento de Vasconcelos informa que sua morte se deu por motivo "desconhecido", enquanto a de Cruz aponta "morte presumida". Euzébio, Rosana e Viviane tiveram "massacre de Acari" como local informado. Já Cruz, só "Acari".

O governo brasileiro nunca justificou por que não emitiu certidão para as outras sete vítimas. A informação é de Aline Leite de Souza, irmã de Cristiane Leite de Souza — um dos assassinados — e atual integrante do grupo das Mães de Acari. Procurada pela reportagem, a Polícia Civil do Rio não se manifestou.

Os familiares dos mortos chegam a Bogotá no próximo dia 10. Na audiência, Aline e outro parente de vítima da chacina vão falar e dois peritos apresentarão avaliações técnicas sobre o caso. O julgamento é a última oportunidade para que Estado brasileiro diga se vai atender ou não demanda feitas pelas famílias.

Memorial, indenização por reparação e políticas públicas que evitem novos casos do tipo são principais reivindicações. Além disso, familiares solicitam oferta de assistência psicológica e pedido de desculpas oficial do Estado. Depois da audiência, partes terão um mês para enviar alegações finais à corte.

Nossa expectativa é sermos atendidos. Queremos coisas mínimas. Não é possível que a gente não possa receber uma certidão de óbito dos nossos familiares e um atendimento psicológico depois de tudo o que aconteceu.
Aline Leite de Souza, irmã de Cristiane Leite de Souza e integrante do grupo das Mães de Acari

O governo brasileiro diz esperar que o caso seja julgado "à luz da complexidade que apresenta". Em nota, a AGU (Advocacia-Geral da União) informou que órgãos envolvidos no caso estão finalizando os argumentos a serem apresentados.

A AGU espera que a audiência seja útil para esclarecer os aspectos fáticos e jurídicos do caso.
Advocacia-Geral da União, em nota

O que foi a Chacina de Acari

Edméia da Silva, que fazia parte do grupo "Mães de Acari", foi morta ao procurar por filho vítima de chacina Imagem: Reprodução/Luciana Whitaker/Folha Imagem

O caso aconteceu em 26 de julho de 1990. Naquele dia, por volta de meia-noite, 11 pessoas que estavam em um sítio em Magé, município da Baixada Fluminense, foram sequestradas por seis homens que chegaram em um carro, uma Kombi e uma viatura policial e que queriam dinheiro.

Os sequestrados eram todos moradores de Acari, bairro na zona norte do Rio. Após alguns dias, a Kombi e a viatura foram encontrados queimados. Na Kombi, foram achados vestígios de sangue.

A investigação policial não identificou autores, mas o crime foi atribuído por familiares das vítimas aos Cavalos Corredores. O grupo de extermínio era formado por policiais militares do 9º Batalhão (Rocha Miranda, bairro vizinho de Acari, na zona norte) e ganhou o apelido por fazer muito barulho ao entrar em favelas no começo dos anos 1990. Invasão de casas, extorsão e agressão de moradores eram práticas recorrentes do bando.

Os corpos das vítimas da chacina nunca foram encontrados. Ao longo das investigações, testemunhas relataram que cadáveres foram jogados no rio Estrela e até que devorados por leões em um sítio que pertencia a um ex-PM. Buscas nos dois locais, porém, não resultaram na localização de restos mortais.

Três anos após desaparecimentos, a mãe de uma das vítimas foi assassinada no centro do Rio. Edméa da Silva Euzébio integrava o grupo das Mães de Acari e tinha denunciado o envolvimento dos Cavalos Corredores. Em 15 de janeiro de 1993, ela estava com a sobrinha Sheila da Conceição quando foi morta a tiros por volta de 17h30 na estação Praça Onze do metrô. O crime também nunca foi esclarecido.

O processo relativo à chacina foi arquivado em 2010. No mesmo ano, as mortes de Edméa e Sheila tiveram a investigação interrompida — mas o depoimento de uma nova testemunha fez com que o caso fosse reaberto em 2011, o que levou PMs a serem denunciados pelos assassinatos. O processo ainda está em andamento.

Das 9 integrantes originais das Mães de Acari, apenas 4 estão vivas. "O Estado matou minha mãe quando não investigou a morte da minha irmã. A minha mãe foi forçada a investigar por conta própria o que aconteceu e perdeu 20 anos da vida", diz Aline.

A gente acha que a dor vai sumir, mas ela volta forte toda vez que tocamos no assunto. A cada mês de julho, a falta de respostas torna tudo mais difícil. O que queremos é que isso não aconteça com outras pessoas. Precisamos de uma resposta do Estado.
Aline Leite de Souza, irmã de Cristiane Leite de Souza e integrante do grupo das Mães de Acari

Aline Leite de Souza, irmã de uma das vítima da chacina de Acari Imagem: Lula Aparício/OAB-RJ

Quem são as vítimas da chacina

  • Viviane Rocha, 13
  • Cristiane Souza Leite, 16
  • Wudson de Souza, 16
  • Wallace do Nascimento, 17
  • Antônio Carlos da Silva, 17
  • Luiz Henrique Euzébio da Silva, 17
  • Edson de Souza, 17
  • Rosana Lima de Souza, 18
  • Moisés dos Santos Cruz, 31
  • Luiz Carlos Vasconcelos de Deus, 37
  • Edio do Nascimento, 41

Chacina reúne características de crime de desaparecimento forçado

O desaparecimento forçado se dá quando alguém é privado da liberdade por ação direta de agentes do Estado ou com a tolerância deles. Outra característica é que a prisão, sequestro ou morte não é reconhecido pelas autoridades. As leis brasileiras não preveem o delito, que existe na legislação de outros países.

Se alguém é vítima de desaparecimento forçado e não tem a morte reconhecida pelo Estado, a família fica impedida de pedir reparação e tomar outras providências. É importante que o Brasil passe a ter esse crime previsto em lei, que casos passem a ser registrados assim e, aos poucos, a gente consiga avaliar com que frequência e de que forma esse problema ocorre.
Fábio Araújo, sociólogo e autor do livro "Das 'técnicas' de fazer desaparecer corpos"

A chacina foi levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2006. À época, familiares das vítimas pediram que o Estado fosse responsabilizado — mas as autoridades afirmaram que a participação de policiais não foi comprovada.

A comissão decidiu em favor das vítimas e determinou providências. Evitar violações de direitos humanos, oferecer apoio psicológico a familiares e realizar diagnóstico sobre milícias no Rio foram algumas das recomendações.

Como o governo não cumpriu as recomendações da comissão, o caso foi levado à Corte Internacional de Direitos Humanos. A corte é uma espécie de segunda instância no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.

É muito importante que as reparações individuais e coletivas sejam recomendadas e que medidas de caráter estrutural sejam tomadas para resolver o problema da violência. Se as determinações da Corte fossem cumpridas, teríamos tido avanços importantes na área de segurança pública.
Daniel Hirata, professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos na Universidade Federal Fluminense

Esperamos que a sentença vá obrigar o Estado a fazer uma reparação.
Carlos Nicodemos, advogado que atua no Projeto Legal das Vítimas da Chacina de Acari

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